Feito no leito da morte, Donuts não é só um grande disco de hip-hop instrumental. É a vitória de um homem contra a estupidez do destino.
J Dilla, talvez o melhor produtor de toda a história do hip-hop, sempre desprezou o dinheiro e a fama (tipo o Kanye West mas ao contrário). A sua vida era a sua arte: ou estava na loja de discos do quarteirão em busca da sua matéria-prima ou estava na sua cave-estúdio, cortando e colando fatias de vinil numa espécie de transe, até chegar à perfeita imperfeição das suas batidas.
Produziu A Tribe Called Quest, De La Soul, Busta Rhymes e Erykah Badu, entre muitos outros. Pharell e West veneravam-no como um deus. E mesmo com todas estas credenciais manteve-se longe dos holofotes do mundo.
Depois adoeceu: os rins escangalhados, hematomas pelo corpo, dores lancinantes. O seu último ano de vida foi duro, quase sempre no hospital, a sua saúde degradando-se de dia para dia. No entanto, J Dilla nunca abrandou. Mesmo acamado, continuava na senda do sublime, apenas munido de um pequeno gira-discos portátil, de um sampler rudimentar e de uma força de vontade sobre-humana.
Foi assim que foi surgindo Donuts, a sua comovente despedida. Um álbum todo ele feito de batidas, sem nenhum MC a distrair-nos da sua arte. São 31 fragmentos (a maioria com pouco mais que um minuto) porque Dilla tinha 31 anos e julgava não os ultrapassar.
Qual Thelonious Monk do hip-hop, Donuts subverte todas as regras de boas maneiras.
Má educação nº 1: que se lixem os tempos certinhos. Um sampler tem uma opção que corrige ligeiras irregularidades no ritmo. Ora uma das originalidades de Dilla é prescindir dessa batota. Os pequenos erros são incorporados, dando um toque desengonçado mas humano.
Má educação nº 2: que se lixe o equalizador. Dilla gosta de cortar médios e agudos a eito, deixando só os graves. O que para um audiófilo é um crime monstruoso para nós é requinte lo-fi. Morte aos engenheiros de som!
Má educação nº 3: as rugas não são para disfarçar, elas contam a nossa história. O grão de um vinil velhinho é mantido, aprofundando a nostalgia da batida. Por vezes, o sample original é apresentado sem alterações, como quem diz: contemplem bem a perfeição deste rosto, pois ele está prestes a ser cruelmente desfigurado.
Se os samples (de soul vintage mas não só) já são quentes na sua fonte, todo este amarrotar adicional só dá mais humanidade às batidas. Como as rugas fundas na tez de um velho pescador.
Três dias depois de fazer 33 anos, Dilla morre. Mas três dias antes, Donuts estava nas lojas. Não chorem, pede-nos Dilla em “Don’t Cry”, num dos momentos mais tocantes do disco. Não choraremos. Contra todas as probabilidades, Dilla conseguiu acabar a sua obra-prima antes de partir. Venceu. E a humanidade ficou um pouco maior.
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