domingo, 7 de maio de 2023

Resenha Power, Corruption & Lies Álbum de New Order 1983

 

Resenha

Power, Corruption & Lies

Álbum de New Order

1983

CD/LP

É mais ou menos um consenso que um disco comemorar seu quadragésimo aniversário de lançamento tendo envelhecido bem é, em si mesmo, um grande êxito.

Mas é um êxito ainda maior quando esse mesmo álbum, além de resistir à prova do tempo, provou ter sido capaz de antecipar estilos e tendências. Fora o “extra" de ter uma das capas mais icônicas da história do pop.

No dia 02 de maio de 1983 saía na Inglaterra, pela gravadora independente Factory Records, o segundo LP do New Order, “Power, Corruption and Lies”. Aqui temos um outro consenso: é o disco que virou em definitivo a página de uma história trágica. Uma história que, a essa altura do campeonato, não é mais desconhecida por ninguém. No começo, não havia New Order. Existia, sim, um grupo pós-punk cult chamado Joy Division cujo talentoso vocalista e letrista, Ian Curtis, um epilético de mente deprimida e com o coração dividido, tirou sua própria vida em maio de 1980. Seus colegas de banda, Bernard Sumner (guitarra e teclado), Peter Hook (baixo) e Stephen Morris (bateria) decidem seguir em frente, mas, surpreendentemente, resistem à ideia de buscar um substituto para Ian. E fazem mais: mudam de nome e saem a procura de um novo som, de uma nova identidade musical. 

Agora como New Order, a banda seguiu por um curto período como um trio e com seus integrantes se revezando na função de vocalista. Para ajudá-los, recrutaram a então namorada de Morris (hoje esposa) Gillian Gilbert, ex-Inadequates, para dividir com Sumner os teclados e as guitarras. E Bernard assumiu em definitivo o protagonismo ao microfone. O New Order “clássico" estava, enfim, formado. “Movement”, o álbum de estreia, lançado em novembro de 1981, já trazia os lampejos dos novos caminhos que almejavam percorrer: um som com forte presença de sintetizadores, ou seja, mais eletrônico. Mas o disco ainda soava sombrio, depressivo e dark, como o Joy Division. Era, nas palavras de Peter Hook, “um disco do Joy Division com os vocais do New Order”. Duas coisas foram decisivas para que finalmente alcançassem o som que desejavam: (1) terem se embriagado com o melhor da recém nascida cena de black music eletrônica norte-americana durante suas primeiras turnês pelos EUA; (2) a demissão do produtor Martin Hannett, com quem vinham trabalhando desde o Joy Division.

A mudança logo se fez sentir no single “Temptation”, de 1982, e, principalmente, em “Blue Monday”, lançada apenas dois meses antes de “Power, Corruption and Lies” e gravada nas mesmas sessões de estúdio que deram origem ao álbum. Essas sessões ocorreram nos estúdios Britannia Row, em Londres, e foram produzidas pelo próprio New Order. Além dos tradicionais guitarra, baixo e bateria, a banda trouxe para o estúdio uma nova gama de instrumentos eletrônicos: um sintetizador Sequential Circuits Prophet 5, dois sequenciadores analógicos (um Powertran ETI 1024 e um Polysequencer), um sintetizador de baixo Moog Source, uma bateria eletrônica Oberheim DMX e um sampler EMU Emulator I. Sem a ajuda de MIDI ou computadores, criaram algo sem paralelos entre os pares da época (OMD, Yazoo, Depeche Mode): riffs de bateria metronômicos, linhas de baixo melódicas, guitarras simples e econômicas, ritmos e grooves sequenciados robóticos, timbres futuristas e um toque erudito (com sons de cordas e instrumentos de sopro sintetizados). Você podia tanto dançar quanto ouvir com fones de ouvido e as luzes do quarto apagadas. Aqui cabe colocarmos em relevo o papel de Bernard Sumner na produção do álbum. Fora o fato de que foi em “Power, Corruption and Lies” que ele finalmente encontrou sua maneira própria de cantar, ele também foi o principal arranjador das canções do disco. E Sumner foi igualmente uma peça-chave na utilização da eletrônica e teria dedicado muitas horas em estúdio à programação dos sintetizadores. Em entrevista concedida à “Q Magazine” em 2015, o então já ex-baixista Peter Hook disse o seguinte: "Eu não acho que qualquer pessoa chegaria onde ele chegou. Ele fez milagres. Ele é um fantástico programador de sintetizadores, um visionário da música eletrônica, e o que ele fez nesse disco era equivalente a transformar uma roda pré-histórica em um foguete espacial”. As letras, ao contrário, ainda eram nessa época fruto de um processo colaborativo que não apenas envolvia os quatro integrantes, como também, eventualmente, o empresário da banda, Rob Gretton. Apesar do uso de sequenciadores e programações, o disco soa bastante orgânico e isso se deve ao fato de que o processo de composição se baseava em jam sessions. Os elementos eletrônicos entravam apenas no final, quando já tinham pronto algo já mais estruturado e elaborado. Algumas canções já nasceram clássicas, mesmo sem terem sido hits no rádio ou na TV: a irresistível “Age of Consent” (conduzida de modo brilhante pela dupla Hook/Morris), a futurista “5-8-6” (uma espécie de faixa-irmã de “Blue Monday”), a ainda obrigatória nos shows “Your Silent Face” (uma homenagem a “Trans-Europe Express” do Kraftwerk) e a bela, e triste ao mesmo tempo, “Leave Me Alone”. Mas há outros destaques em “Power, Corruption and Lies”, como “The Village”, “Ultraviolence" e a instrumental “Ecstasy”, esta última um exemplo concreto da razão pela qual Stephen Morris ficou mundialmente conhecido como “a bateria eletrônica humana”. Assim escreveu Michael Butterworth em seu livro “Blue Monday Diaries: In the Studio With New Order” (Plexus, 189 páginas): "Outros artistas vêm fazendo música sintetizada sequenciada há alguns anos, mas esta é talvez a primeira vez  que uma banda de rock usa essas técnicas no coração de sua música”. Aí está o grande mérito de “Power, Corruption and Lies”: ele fez mais do que dar à luz ao que hoje conhecemos como o som clássico do New Order. Ele uniu dois mundos e duas tribos diametralmente opostos. Pôs um pouco de rock nas pistas das discotecas e levou a música eletrônica dance para os roqueiros. Provou que esses dois universos não apenas podiam conviver em harmonia, mas, também, se polinizar um ao outro, fazendo surgir dessa síntese algo novo (e que se tornou lugar-comum anos depois). Certamente não foram os primeiros a cruzarem o rock com a música eletrônica, mas provavelmente foram um dos poucos a levarem essa mistura para as massas - e, vale lembrar, fazendo isso de dentro da cena independente. Se você curte rock e ainda torce o nariz para música eletrônica e dance music, pode apostar que esse álbum tem tudo para fazê-lo mudar de ideia.

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