quinta-feira, 25 de maio de 2023

Sérgio Godinho – Escritor de Canções (1990)

 

Um disco ao vivo despido e íntimo, que acaba por servir quase como um precioso best-of

No início da década de 90, Sérgio Godinho decidiu avançar com algo que lhe andava havia muito na ideia. Queria fazer uma temporada numa sala em Lisboa, uma série de espectáculos do dia tal ao dia tal. Isto é uma coisa simples e muito feita em alguns países, mas não é muito comum por cá (ainda hoje). Ou há um espectáculo (ou três, se houver muita procura) ou há uma digressão, com o artista a correr o país de sala em sala, de terra em terra. E se Godinho gosta do palco também é verdade que lhe terá agradado ir todos os dias à mesma sala, ao mesmo camarim, fazer o mesmo espectáculo, só mudando o público, de dia para dia. De certa forma, foi um regressar aos tempos de Paris, no início da década de 70, quando fazia parte do elenco do Hair, e ia ao final do dia “picar o ponto” e entrar ao serviço no mesmo teatro.

A escolha da sala, depois de várias alternativas, acabou por recair sobre o auditório do Instituto Franco-Português, em Lisboa, para um total de 20 datas (algumas das quais acresceram ao inicialmente pensado). A sala não é grande e o espectáculo montado ainda salientou mais esse carácter intimista e depurado. Em palco, apenas três músicos: Godinho, na voz e na guitarra (que ficava muitas vezes pousada, permitindo ao cantor a teatralização física de que tanto gosta), Manuel Faria nas teclas (e arranjos) e Nani Teixeira no baixo. Nada de coros, nada de percussão, as canções de Godinho em versão despida, com o público ali à mão de semear.

É nessa simplicidade que reside a força deste disco, que tem muitos momentos arrepiantes, a prova da força que aquelas canções e aquelas palavras têm, sem necessidade de muito mais. Também os dois outros músicos presentes são de um apoio e de um bom gosto à prova de bala, não deixando nunca qualquer vazio não intencional.

Temos muitos êxitos, desde os obrigatórios “Lá em baixo”, “É terça-feira”, “Lisboa que amanhece” ou “A noite passada”, alguns dos quais conhecem aqui algumas das suas versões “definitivas”. Mas há também espaço para dois inéditos: o arranque do espectáculo (com Godinho ainda fora de cena) com “Notícias Locais” e “Circunvalação”, dedicada ao Porto e às suas encantadoras mulheres. E ainda “L’ame des poètes”, de Charles Trenet, um dos vários ídolos franceses do cantor portuense.

E há muito mais, mais de 20 músicas (em vinil deu disco duplo), em que o público escuta reverencialmente, fazendo-se ouvir-se quando termina a canção que acabara de os hipnotizar.

O espectáculo foi um sucesso, e Godinho acabou por levá-lo a Macau, a Bombaim e a Goa. Em disco, ficou um documento poderoso e apaixonante desse tempo.

O primeiro best-of da sua carreira foi o excelente Era uma vez um rapaz, de 1985, mas este Escritor de Canções acaba de ser quase um volume 2, muito diferente do primeiro, que o complementa e lhe acrescenta um outro Sérgio Godinho. Este sempre gostou de baralhar os arranjos, seja em discos novos como em reinvenções de palco, e nas últimas décadas o mercado tem sido inundado com colectâneas, umas temáticas (por exemplo, as canções de amor) e outras generalistas, e com discos ao vivo, em parceria ou não. No especial Altamont, selecionámos este disco ao vivo para mostrarmos também esse lado. Há outros álbuns com um conceito mais comercial, talvez mais interessante, mas certamente nenhum tão emocionante como este (ouça-se a versão de “O Fugitivo”, e acabar-se-ão as dúvidas). Na altura em que saiu, Escritor de Canções surgiu como algo pouco comum, mas já um sinal desse desejo de reinvenção, de escavação não arqueológica do seu próprio catálogo, insuflando-lhe nova vida, que viria a conhecer tantos episódios.

Este disco traz-nos não um SG Suave, mas sim um SG Sem Filtro. Muito bonito e presença indispensável na prateleira dos grandes fãs de Sérgio Godinho.


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