Godinho muda de som em direcção aos teclados sintetizados, num disco nocturno e com cheiro a jazz.
Anos 80 e sintetizadores são coisas que aparecem muitas vezes juntas, e normalmente com mau resultado, ouvidas à distância dos anos. Em 1986, Sérgio Godinho também foi por aí, com uma grande diferença: o bom gosto.
O resultado dessa investida é Na vida real, álbum em que praticamente não se ouve a guitarra acústica de Sérgio Godinho. Aqui, o protagonismo é todo dado aos teclados – pianos e sintetizadores -, alguns sopros e o baixo eléctrico, bem saliente e protagonista, de Yuri Ferreira. É talvez o disco de Godinho que apresenta uma maior uniformidade e coerência musical entre as várias músicas e isso deve-se em parte ao papel desempenhado por António Emiliano. O músico vinha de um background diferente e o seu percurso fez-se sobretudo nas bandas sonoras para filmes, espectáculos de dança ou peças de teatro. Além de assegurar todas as teclas, Emiliano recebeu a importante incumbência de praticamente tomar conta dos arranjos do disco.
Como dissemos, há um tom nocturno, quase de bar de light jazz, que perpassa Na vida real. Sentimento que, aliás, vem da própria capa, uma das mais elegantes e bem conseguidas da carreira do músico portuense.
Há uma música que, necessariamente, se destaca das restantes: o clássico “Lisboa que amanhece”, que só reforça esse lado de noite, e que surge aqui na sua primeira versão editada (viria a conhecer novas versões e muitas vidas, como Godinho gosta de fazer). E há várias coisas atípicas neste disco: o aproveitamento de um tema disperso, uma versão de outro artista e até o primeiro exemplo de Godinho a gravar uma versão nova de música sua (“Pode alguém ser quem não é”, inicialmente editado em Pré-Histórias, de 1973).
Quanto ao tema disperso, falamos de “Elogio do artesão”, cujo texto foi feito para o catálogo da 1ª Exposição do Artesanato Urbano e depois musicado para o disco 100 Anos de Maio, iniciativa da CGTP em que vários artistas – como Carlos do Carmo, Zeca Afonso ou Vitorino – celebravam o centenário desse original 1º de Maio.
Na versão, temos “O carteiro”, de António Mafra, com direito a apresentação do autor logo no arranque do tema. António Mafra foi um cantor popular que Sérgio Godinho há muito admirava, e a sua leitura desta música conquistou o direito a ser presença habitual nos seus espectáculos ao vivo, até porque Godinho sempre apreciou a possibilidade teatral que o tema lhe permite. Conta ainda com a presença de Rui Veloso, na voz e na sua inconfundível guitarra eléctrica. Dois músicos do Porto a homenagear outro.
E ainda temos aquele que talvez seja um dos primeiros exemplos de um “rap” cantado em português, na forma de “O fugitivo”.
Os diferentes registos e origens das músicas que compõem Na vida real poderiam ter dado uma misturada estranha. Mas aqui, com o tratamento de António Emiliano e a personalidade vincada (e as letras, novamente complexas e exemplares) de Sérgio Godinho, o disco flui, evolui e muda, sem sentirmos nunca que estamos a entrar, de repente, num cenário estranho. Com a política pura e dura a ficar lá para trás, é um trabalho que tem os restantes eixos clássicos de Godinho: o amor e a observação social.
E que, mesmo profundamente ancorado nos anos 80 (lembrando o registo instrumental do Djavan de então), não soa demasiado datado (enfim, talvez aquele som de bateria incomode um bocadinho…).
Na vida real recebeu o prémio de disco do ano para o Se7e, mas não foi um estrondo de vendas. Como o próprio Godinho admite no livro “Retrovisor”, de Nuno Galopim: “É um álbum extremamente forte e na altura fiquei um pouco desiludido, porque não teve vendas muito espectaculares. Mas isso são os mistérios do consumo”.
E tem toda a razão.
Sem comentários:
Enviar um comentário