O homem da voz funda dá-nos mais um belo disco em que confirma que está, de facto, num campeonato à parte da esmagadora maioria da concorrência.
Bill Callahan fez-nos esperar seis anos para nos dar Shepherd in a sheepskin vest, no ano passado, entretido com uma vida familiar finalmente feliz. Daí a surpresa quando foi anunciado que já havia um novo disco pronto a sair. Surpresa e felicidade, acrescente-se, porque os últimos trabalhos do americano de 54 anos nunca têm ficado abaixo do excelente.
E ainda não é desta que Callahan se espalha, num longo percurso começado há muitos anos ainda sob o nome falsamente colectivo de Smog.
Em Shepherd in a sheepskin vest – que foi considerado pela redacção do Altamont como o quinto melhor disco de 2019 – fomos surpreendidos por um Bill Callahan estranhamente feliz, contente com o rumo que a sua vida levou, encontrando a mulher da sua vida, casando e tendo um filho. O único defeito desse excelente disco, talvez, é ser um pouco longo, apostando em muitos temas mas mais curtos do que o habitual, cortando o seu mais típico registo de deixar a música deambular e desenrolar-se e revelar-se à nossa frente, pelas curvas do caminho.
Em Gold Record, o fresquinho disco deste ano, há menos músicas mas não há de todo menos música. Há necessariamente uma continuidade nas paisagens musicais, de um registo para o outro (há até quem diga que Callahan está sempre a fazer o mesmo magnífico disco), movidas a viola acústica com toques de slide “ranchera” aqui e ali. A grande mudança, além de uma menor dispersão, é temática. No álbum anterior, fomos conduzidos para uma visão pessoal de acalmia e felicidade, como nunca antes havia acontecido. Com Gold Record, e mesmo que fale muitas vezes na primeira pessoa, o norte-americano esconde-se mais. É o homem de óculos escuros em pano de fundo de uma das suas histórias aparentemente prosaicas, que escondem sempre, lá está, grandes verdades sobre o mundo, entregues com a subtileza de quem busca respostas mas não julga ter a certeza de nada. Menos ravinas, rios e águias, mais subúrbios de Nashville e bombas de gasolina no deserto nocturno.
O que temos nestes dez temas são vinhetas, contos à maneira magistral de Raymond Carver, pegando em episódios do dia a dia para revelar o que está por baixo de uma vida banal (escute-se “The Mackenzies” ou a fantástica “Pigeons”, que abre o disco, por exemplo). Note-se ainda a gravação de uma nova versão de “Let’s move to the country”, originalmente editada em Knock Knock, de Smog, de 1999. A diferença mais essencial é que, na versão de 2020, Callahan consegue finalmente acabar algumas frases muito importantes, e que ficaram sem as expressões finais nesse disco de há 21 anos: Let’s start a …(family) e let’s have a… (baby). O Bill de hoje não tem medo de o dizer, fechando o ciclo dessa canção que vem de tão longe.
Este ano não tivemos a felicidade de voltar a ver Bill Callahan ao vivo em Portugal, uma vez que pandemia obrigou a adiar os seus concertos. Mas recebemos a recompensa de mais um grande disco deste grande músico, que vive num nível muito à parte da sua concorrência.
Há quem defenda que Callahan perdeu o nervo quando encontrou a paz, como acontece com tantos artistas desde a origem da arte como a conhecemos. O que nós dizemos é mais simples que isso: está aqui um sério candidato à lista dos melhores discos de 2020.
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