quinta-feira, 1 de junho de 2023

Sérgio Godinho – Pano-cru (1978)


 

Pano Cru é um disco de charneira que faz a ponte entre o Sérgio Godinho político e o criador de êxitos imortais.

Em 1977, Sérgio Godinho tinha chegado ao fim do contrato com a Sassetti/Guilda da Música, sua editora anterior, e era altura de mudar de ares. Na Sassetti, a comissão de trabalhadores havia tomado conta da gestão, mas não revelava grande talento para isso. Mais, Godinho sentiu que estavam a ser impostos alguns mecanismos de controlo sobre o trabalho dos artistas e, gravados os seus primeiros quatro discos, foi em busca de nova casa, para gravar Pano-cru.

Essa casa foi a Arnaldo Trindade/Orfeu, onde estavam nomes como José AfonsoFausto ou Vitorino. Opção de que, mais tarde, Godinho se viria a arrepender. Mas já lá vamos. Primeiro, siga a música.

Pano-cru (editado no ano em que nasceu o autor destas linhas) é um passo em frente face ao que Godinho vinha fazendo até aí. O próprio músico admite que havia algum esgotamento no anterior De Pequenino se Torce o Destino, apesar de ser um disco que continua bem vivo e marcante no seu percurso e junto dos fãs. Seja a simples passagem do tempo ou a mudança de ares, Pano-cru revela um Godinho menos panfletário e político e aprofundando o seu registo de amor e de retratos do quotidiano, que viria a render-lhe alguns dos maiores êxitos da sua carreira.

É a casa de grandes clássicos, começando pelo slogan da ritmada “A vida é feita de pequenos nadas”, que abre o disco. Segue-se a emotiva balada de “O primeiro dia”, e temos só nestes dois primeiros temas pano para mangas, e lições que serviram de banda sonora a tantas e tantas vidas nas últimas décadas. “Balada da Rita”, que mais tarde seria aproveitada para o filme Kilas, o mau da fita, é um daqueles espantosos retratos humanos que nos faz crer que conhecemos de perto a sua protagonista. A faixa-título fecha o disco com uma duração inferior a dois minutos, e é um simples mas poderoso manifesto pessoal: “ouve, meu amigo/põe a máquina a gravar/ queria só explicar aqui/que eu sou como o pano-cru/ como o pano-cru eu ainda estou por acabar/e como o linho veio da terra/assim viemos eu e tu”. O homem e um povo em permanente construção.

Não podemos deixar de salientar também a lindíssima “2º Andar, Direito”, talvez a mais longa canção gravada por Sérgio Godinho. É um vívido retrato da vida de um jovem casal que já viveu melhores dias, cantado (sabemos só no final da canção) por um vizinho solitário que serve de narrador e assim preenche o vazio da sua própria vida. Lindo, terno e arrepiante.

A política e a crítica social não estão ausentes, naturalmente. “Venho aqui falar” atira-se aos recuos do caminho rumo ao socialismo, enquanto “Lá isso é” vai deixando alertas sobre as derivas que iam diluindo os sonhos de outrora, assente numa cama musical que nos atira para a música popular portuguesa, ao som da concertina e de adufes. “O homem fantasma” pertence à mesma “família”, mas servida por arranjos fora do comum, com sopros e uns ferrinhos maníacos, com cheiro a marcha popular.

Sobram temas que não são menores, como “O galo é o dono dos ovos”, exercício curiosíssimo em que o refrão é cacarejado e com uma letra cheia de metáforas bem trabalhadas; e “Feiticeira”, uma música de amor que conjuga um swing africano “a la Zeca” com uma guitarra espanhola, numa ponte entre a Península Ibérica e África.

Duas notas finais: a bonita capa, algo que não é necessariamente o ponto forte da longa discografia do músico portuense; e a qualidade do som, muito elevado tanto em temas mais despidos como naqueles mais cheios de detalhes.

O dissabor com a escolha da editora teve a ver com o contrato assinado então. Em troca de uma avença, um valor fixo por mês (um alívio, depois de tanta instabilidade, imaginamos), Godinho entregou os direitos de Pano-cru e do disco seguinte, Campolide, à Arnaldo Trindade. A editora teve mais tarde problemas, os direitos passaram para a Rádio Triunfo, depois para a Movieplay. No meio desta confusão, estes dois álbuns foram os últimos a serem editados em CD (e numa edição pouco cuidada) e são os únicos pelos quais Sérgio Godinho não recebe, até hoje, um tostão relativo às vendas. Uma série de problemas contratuais que deixaram Godinho “muito frustrado em relação a esses dois discos, que para mim são discos de charneira, mesmo a ponte entre o antes e o depois”, como revelou a Nuno Galopim no livro “Retrovisor”.

Pano-cru é uma das peças-chave dessa evolução, um passo em frente na afirmação popular e comercial de Sérgio Godinho, e um disco que se ouve hoje, tanto tempo depois, com muito prazer.



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