quinta-feira, 1 de junho de 2023

Sérgio Godinho – Kilas, o Mau da Fita (1980)


 

Kilas, o Mau da Fita é, para além do conhecido filme, uma interessante banda sonora de Sérgio Godinho. Muitos a ignoram, sobranceiramente. Se o Rui Ventura Tadeu soubesse disso, mandava partir as fuças a esses surdos ignorantes.

Cheguei primeiro ao filme e só depois, muito depois, ao disco. Por isso, também neste texto começarei pela película, numa breve nota, para em seguida atacar o álbum, de forma também sucinta. Muito tempo passou, e hoje olho para Kilas, o Mau da Fita (a obra de José Fonseca e Costa) e proponho a mim próprio um desafio nostálgico: recordar publicamente (mas de forma comedida, pois claro) o que pensou sobre ele a cabeça de um rapaz de treze anos, quando o viu pela primeira vez. E convém relembrar o que o próprio Sérgio Godinho cantou em “Já Joguei Boxe, Já Toquei Bateria”, no álbum Canto da Boca: “é que o rapaz sou eu”. Vamos lá a isto, então…

O machismo decadente de Kilas (naquele que para mim foi o melhor papel de Mário Viegas no cinema português) parecia-me irresistível, de tão patético, feito de uma malandragem cabotina, muito enraizada no Portugal de outros tempos (anos 70), mas que as pessoas da minha idade, nessa altura, já consideravam imbecil, julgo eu. Na verdade, ela ainda hoje existe, mas de forma moribunda, bastante etílica, e sem dentes. Só que o filme era também, e sobretudo para mim, as atrizes Lia Gama, Adelaide Ferreira e Paula Guedes (aquela cena da violação em cima de uma mesa de um velho edifício abandonado, meu Deus, é um dos momentos maiores do filme, cena mista de tragédia íntima, comédia humana e erotismo quanto baste). À sua maneira, todas elas eram lindas, no médio ecrã de uma das salas do cinema Quarteto, onde assisti ao filme, em estado de quase êxtase. A Pepsi-Rita (“Foi por causa da Rita que tudo começou”, convém lembrar), a Palito La Reine e a Ana (Lia Gama, Adelaide Ferreira e Paula Guedes, respetivamente) fizeram parte do meu imaginário durante muito tempo, e sempre pelas melhores razões, se é que me faço entender…

A sátira a um certo tempo e a um certo meio muito específicos marcou-me bastante, e lembro-me de ter desejado que houvesse um livro por detrás do filme. Queria muito lê-lo, mas não, o argumento era um original do realizador e também do músico que fez, naturalmente, a banda sonora dessa longa metragem de grande sucesso nos anos 80, e ainda de Tabajara Ruas. E depois, havia ainda uma certa aura de mistério na figura do Major (Duarte Lima) que me fascinava, se bem que uma outra personagem, o Tereno (interpretada pelo mítico Luis Lello, falecido poucos meses depois da estreia, aos 33 anos), fosse também fabulosa, um tipo traumatizado pela existências dos comunas e que tinha servido Portugal na guerra de África ao serviço dos Comandos. Tudo isto para dizer que só bastante mais tarde, quando o CD de Kilas, o Mau da Fita foi editado, já em pleno século XXI, pude reviver, ouvindo-o, algumas das peripécias do chulo Rui Ventura Tadeu (o Kilas) e sus muchachas, que tanto me marcaram no meu tempo de adolescente.

O disco abre com “Valsa da Ana”, apenas ao piano, e lança sobre o ouvinte uma enfeitiçante e terna melodia, ligeira e tranquila, mas que ao mesmo tempo, no breve espaço de um minuto e quatro segundos, é também reveladora de alguma forma de inquietação. Será recorrente, esse desassossego, ao longo de todo o álbum, aliás. Como introdução a um disco bastante curto (tem apenas vinte e três minutos e um segundo de duração), “Valsa da Ana” introduz o tema “É Terça-Feira”, que mais não é do que a “Valsa da Ana” com letra cantada por Sérgio Godinho. Depois vem o “Genérico do Filme”, que apresenta, a espaços, a voz do Kilas a referir-se a algumas das personagens femininas e a revelar o modo de vida dele e da sua gente, interligando pequenos momentos instrumentais das grandes canções do álbum, que são a já referida “É Terça-Feira”, mas também a “Balada da Rita” e o “Fado do Kilas”, esta última cantada por Lia Gama e com introdução do Kilas Viegas, sendo que a “Balada da Rita” aparece no disco em dois momentos distintos, a primeira através da voz da Pepsi Rita, a segunda com a voz da baby suicida Adelaide Ferreira, numa versão mais dançante (a partir do primeiro minuto, mais segundo, menos segundo) que serve como base de uma cena do filme passada numa discoteca. Curioso é que esta célebre Balada já havia sido estreada no fabuloso Pano-cru, com a voz de Sérgio Godinho, naturalmente. Ambas as canções, no filme, colam-se ao imaginário do próprio Kilas, o catalisador de tudo o que se vê na tela. Há ainda espaço para a “Tereno’s Tune” e o “Tema do Major”, esta com breve introdução do chulo protagonista. Finalmente, “Valsa da Ana” surge de novo, fechando o álbum, dando-lhe uma ideia de circularidade, aqui numa versão um pouco mais estendida e com curiosa, embora mínima, espécie de jam session quase no início, e englobando momentos das mais importantes canções do filme.

Está feito o retrato desta incursão de Sérgio Godinho no mundo do cinema. Não foi a primeira, como bem se sabe, mas terá sido (não tenho a mínima dúvida) a mais importante. Kilas, o Mau da Fita é simultaneamente um belo filme e uma ótima banda sonora, merecendo perfeitamente, pela dupla vertente que encerra, o seu espaço na discografia de Sérgio Godinho. Para mais, embora isso seja (mais ou menos) lateral à essência deste texto, têm um especial lugar cativo no meu coração.



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