quarta-feira, 7 de junho de 2023

Sérgio Godinho – Pré-Histórias (1973)


 

Pode Sérgio Godinho ser quem não é? No início deste ano, um dos heróis do autor que celebrou este ano o seu 75º cantava: “I contain multitudes”. Também o autor de Canto da Boca passou por múltiplas fases e contém em si mais do que um único escritor e cantor de canções.

Pré-Histórias é o segundo tomo da primeira fase da carreira de Sérgio Godinho, tendo sido composto ainda no exílio parisiense/holandês. A sonoridade de Os Sobreviventes (1972) e Pré-Histórias (1973) é guiada pela guitarra do jovem sempre imberbe que encontrou naquele instrumento o seu aliado musical. Mas o que distinguia este de tantos outros cantautores de excelência que habitavam este canto europeu? A sonoridade de Godinho era muito mais rock do que a dos seus contemporâneos, ora mais virados para a música tradicional (Zeca Afonso), para o fado (Adriano Correia de Oliveira) ou para a chanson (José Mário Branco). Bastava ouvir “Maré Alta” para perceber que não estávamos perante um baladeiro de Coimbra ou de um etnomusicólogo clássico.

Nascido no Porto, em 1945, aos 15 anos o jovem Sérgio compra uma guitarra e durante uns anos tocou em conjuntos e escreveu umas quantas canções de que não há registo. Mas havia de interromper esta “carreira” quando, aos 20, foge do país para não ter de cumprir serviço militar. Vai para a Suíça, serve de estivador e viaja até às Caraíbas, além de viver em Amsterdão e França e de fazer, inclusive, teatro musical. No Maio de 1968 está em Paris e conhece Zé Mário Branco, que seria um dos seus mais importantes camaradas de vida e de música.

Em 1971 grava Romance de um Dia na Estrada, o seu EP de estreia, com quatro canções: a faixa-título, “A Linda Joana”, “Charlatão” e “A-A-E-I-O”, todas as quais apareceriam novamente no LP que gravaria nesse ano: Os Sobreviventes. Um excelente e inovador disco, tinha um prenúncio sobre o caminho da liberdade que haveria de passar por Portugal numa madrugada inteira e limpa. Mas antes dessa liberdade chegar houve tempo para um segundo disco: Pré-Histórias.

Apesar de não tão interessante ou marcante quanto Os Sobreviventes, neste álbum Godinho deixou canções que se tornaram marcos para milhares de pessoas e deu provas de ser muito mais do que um cantor de protesto. Os apaixonados reservaram-se o direito de reivindicar “A Noite Passada”, os resistentes contra a ditadura adoptaram como sua “Eh! Meu Irmão (Ou Mais uma Canção de Medo)” e os indecisos encontraram em “Pode Alguém Ser Quem Não É?” um hino. Havia canções para toda a sensibilidade e esta é uma das principais marcas da carreira que o músico construiu ao longo das últimas (quase) cinco décadas.

Musicalmente Pré-Histórias é irrepreensível e muito mais variado do que o seu predecessor e o seu sucessor. A melodia de “Barnabé”, o acompanhamento simples e eficaz de “Eh! Meu Irmão”, ou a dolência de “Já a Vista me Fraqueja” mostram todo o esplendor inicial deste homem que seria o mais produtivo – sem nunca baixar demasiado a bitola – de todos os seus contemporâneos (mais de 20 discos entre originais e bandas-sonoras).

No outro dia falava com um grande amigo que fotografa por estas bandas e que diz que “A Noite Passada” é uma das dez grandes canções portuguesas. Concordo plenamente, apesar de nem estar entre as que mais gosto do Sérgio Godinho. Mas é impossível não referir a beleza desta incrível balada que já terá sido banda sonora de milhares de apaixonados (eu incluído) e que é, a par de “O Primeiro Dia” e “Com um Brilhozinho nos Olhos”, a canção mais conhecida entre as duas centenas compostas por Godinho.

Depois de Pré-HistóriasSérgio Godinho enveredou por outros caminhos mais distantes do cantautor tradicional, mas isso já são outros quinhentos. E quanto à pergunta inicial deste texto? Pode. O homem dos sete instrumentos pode ser quem bem quiser. Lutou por esse direito e assegurou o seu lugar.



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