terça-feira, 6 de junho de 2023

Sérgio Godinho – À Queima-Roupa (1974)

 

O disco mais político de Sérgio Godinho, nascido bem no meio do 25 de Abril de 1974.

Depois de Paris e da Holanda, Sérgio Godinho foi, em 1972, viver para o Canadá. Antes disso vivia uma situação precária, sendo formalmente já um refratário, e o Canadá – o país da sua companheira, Sheila – surgia como uma via dupla: por um lado, mais um país novo, mais uma aventura; por outro, a chance de ser um cidadão novamente legal, se casasse. Assim foi que a vida de saltimbanco de Godinho atravessou o Atlântico, onde, entre outros trabalhos, se juntou a um grupo de teatro. Em 1974 estava prevista uma viagem à Europa, a pedido do pai Godinho, que queria juntar os filhos para comemorar o seu 60º aniversário. Não podendo Sérgio entrar em Portugal sem ser preso, o ponto de encontro era ainda vago…podia ser em Paris, ou Espanha, logo se via.

É neste momento que rebenta, em Lisboa, o 25 de Abril de 1974. Como a viagem para a Europa estava já paga, Sérgio fez-se ao caminho, chegando a Paris a 1 de Maio, na posse de informações ainda pouco claras sobre a situação em Portugal. Muitos dos portugueses na capital francesa já tinham vindo a correr para celebrar a liberdade no seu país e Sérgio, depois de lhe assegurarem que não havia perigo (era difícil de acreditar!), veio então para Lisboa. Na mala, trazia algumas canções que andava a preparar para o seu terceiro disco; no peito, a emoção de ser finalmente um homem livre, e mais: ver o seu país em delírio coletivo.

Como conta a Nuno Galopim no incontornável livro “Retrovisor”, Sérgio chega a Lisboa e é logo “metido na água a ferver”. Era o tempo dos cantos livres, em que os artistas iam a todo o lado em “concertos” relativamente espontâneos, sem grande condições, Era frequente no mesmo dia darem-se espectáculos em dois ou três sítios diferentes, e em palco encontravam-se alguns dos grandes vultos da música portuguesa, como os inevitáveis Zeca Afonso e José Mário Branco, já companheiros de estrada e de discos de Godinho.

Foi no meio desta abençoada confusão que foi nascendo À Queima-Roupa. Com músicas vindas do Canadá e outras nascidas em pleno 25 de Abril e pouco depois. Após ver a família e viver intensamente aqueles dias, Sérgio volta a Vancouver. Sheila estava grávida (de Jwana, a primeira filha de Sérgio Godinho), havia ainda compromissos com o grupo de teatro e a ideia era gravar lá o disco. Mas já não havia proibição de voltar a Portugal e tudo se conjugou quando Sérgio é convidado por Raul Solnado para representar na peça “Liberdade, Liberdade”, no Teatro Villaret. Regressou, de vez. “Trazia então o disco meio feito e, de Setembro a Novembro, preparei o resto”, ilustra no mesmo livro já referido.

À Queima Roupa é assim, uma mistura de temas já alinhavados e outros que nasceram depois, uns do Canadá, outros de Lisboa, e outros dos dois lados do grande mar. O histórico “Liberdade”, por exemplo, nasceu em Portugal logo após o 25 de Abril, mas foi gravada aquando do breve regresso ao Canadá. Este tema, cujo slogan inesquecível “A paz, a pão, habitação, saúde, educação” é descrito por Godinho como “um grafiti posto em rock” e tinha de abrir o disco deste tempo novo.

É apenas um de vários petardos políticos, como “O grande capital”, “O meu compadre”, “Independência” (sobre os movimentos de libertação africanos e a indecisão sobre o que fazer com as colónias) ou “Os pontos nos iis”, esta última sobre a ocupação de terras por parte de cooperativas criadas no momento. “De coração e raça” é um caso curioso, e não apenas pelo recurso ao pontuado da guitarra eléctrica. Gravada no Canadá, é uma espécie de declaração de intenções: “agora ou vai ou racha”, e um abraço de um português emigrado e fugitivo ao seu povo, mais do que ao seu país. Um momento fraterno e ao mesmo tempo determinado, de um tipo que nunca embarcou em nacionalismos.

Mas Sérgio Godinho nunca foi apenas um músico político. O amor é outro dos seus grandes temas, presente em todos os seus discos, e aqui também, em “A minha cachopa” e na terna “Como um postal para o Canadá”, em que este homem cuja vida estava há anos espalhada pelo mundo, canta “já vou, meu amor, já venho, se o despertador tocar, estarei contigo ao jantar”.

E há esse clássico que é “Etelvina”, tema que conheceu muitas vidas até hoje e nunca deixou o repertório de Godinho. É uma das vinhetas clássicas do músico portuense, que cria personagens e as suas histórias, como contos apenas esboçados mas que se desenham completos na nossa cabeça. É um registo que Sérgio mantém até hoje, com muito sucesso. A importância de “Etelvina” vai para além da própria canção, que é marcante, diga-se. Foi com esta que Godinho furou uma espécie de bloqueio criativo que o apoquentava, ainda no Canadá, longe da sua terra e das suas referências. Foi encontrá-las na personagem de Etelvina, menina-mulher rude e despachada, que podia de facto ter vivido nas ruas do Porto. Foi o seu nascimento que reconciliou Sérgio com a composição, numa altura em que “as coisas não estavam a sair nada bem”.

Com o regresso a Portugal em pleno período revolucionário, Sérgio Godinho pôde, finalmente, apresentar ao vivo as suas canções, que tanto serviam de banda sonora do que se passava como se alimentavam disso mesmo. Foi o início de uma longa e feliz relação do músico com os concertos, depois do traquejo de palco adquirido no teatro.

À Queima Roupa é o testemunho desse momento, em que tanto o país como o homem viveram rupturas e transformações sísmicas. E um clássico da música portuguesa.


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