quinta-feira, 15 de junho de 2023

Stevie Wonder – Innervisions (1973)


 

O menino-prodígio da soul faz-se um homem, com um disco que tem tanto de político como de espiritual. Nove canções perfeitas, transbordantes de luz interior.

No início dos anos 70, Marvin Gaye fartou-se de ser tratado como uma peça numa linha de montagem, reclamando autonomia criativa. What’s Going On foi o fruto da revolta e o início de uma nova era na Motown.

Stevie Wonder foi outro dos rebeldes, aproveitando o fim do seu contrato com a Motown para exigir novas margens de liberdade. Começa então o seu período de maturidade, em que cada álbum é pensado como um todo, em vez do amontoado de singles (e de palha para encher) que era antes regra. O pico da sua criatividade acontece em 1973 com o sublime Innervisions.

Elogia-se muito o seu lado conceptual (uma tomada de consciência sobre as chagas e injustiças do seu tempo, à moda de What’s Going On) mas se hoje Innervisions é um clássico incontornável não será, certamente, pela sua homilia (por mais justa e humanista que ela seja). É na perfeição da sua música que este disco se transcende: nove tiros, nove canções memoráveis, com melodias inventivas que ficam no ouvido, acordes sofisticados em pano de fundo e um crepitar gospel onde podemos aquecer as mãos frias.

Stevie Wonder
Stevie Wonder

Em paralelo com o que Herbie Hancock andava a fazer no jazz de fusão, Innervisions faz avançar a linguagem do funk através da experimentação com sintetizadores analógicos. Stevie depressa descobriu que as suas texturas aborrachadas e o grasnar wah wah – como se as teclas fossem bichos estranhos e falassem – eram perfeitas para desenhar grooves assassinos (os gingões “Higher Ground”, “So High” e “Leaving For the City” não nos deixam mentir). Enquanto o krautrock explorava as mesmas tecnologias em busca de sons frios e maquinais, Wonder procurava o seu lado quente e soalheiro, mais consentâneo com o calor humano do R&B e com o seu próprio temperamento extrovertido e optimista. Prince e Michael Jackson continuariam o trilho do mestre na década seguinte.

Num disco tão estupidamente consistente, há alguma pérola que brilhe mais? Diríamos que não mas Wonder nunca escondeu a sua predilecção por “Visions”, um tema tão delicado e vulnerável que receamos que se desintegre ao mínimo sopro. Haverá alguma que brilhe menos? Acusarão, talvez, “All in Love is Fair” de sentimentalismo meloso. Serão injustos. É uma balada arrebatada, sim, senhor, mas ainda sem a banheira de canderel de “I Just Called to Say I Love You”.

Por fim, gostaríamos de chamar a atenção para a complexidade emocional de Innervisions. A sua alegria tem sempre qualquer coisa de tristeza (um acorde dissonante quebrando a anterior harmonia) e a tristeza sempre qualquer coisa de alegria (a sua voz dourada trazendo esperança). No final, é sempre a luz interior de Stevie Wonder que vence. Como um cego encontrando um caminho onde antes só víamos escuridão.



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