A cantora mais bem sucedida da cena pop mundial aproveitou a pandemia para se reinventar num disco “indie” e, sobretudo, íntimo.
O ano de 2020 tem sido tudo menos típico. Para ajudar a este cenário, só faltava mesmo Taylor Swift, talvez a maior mega-estrela da pop dos últimos largos anos, fazer uma viragem abrupta à esquerda e editar um disco diferente de tudo o que havia feito até aqui.
O caminho da norte-americana foi longo. Começou ainda muito jovem, na adolescência, no campo da country emocional, pisando progressivamente as passadas de coisas pouco recomendáveis como Shania Twain, um dos grandes exemplos desse crossover entre country e pop. Com o passar do tempo, a country foi ficando para trás, dando lugar à música pop e comercial em todo o seu esplendor. Os resultados numéricos falam por si: recordes de vendas batidos, digressões esgotadas, legiões intermináveis de fãs, uma fortuna a crescer. Aquilo que unia as diferentes fases da carreira de Swift era a sua eficácia, o seu olho para o detalhe certeiro, a forma quase calculista como tudo – desde a composição das músicas aos videoclips, passando pelas campanhas de apresentação de novos trabalhos – esteve sempre desenhado para maximizar o seu efeito. Com sucesso.
O que faltava então, a alguém que, no jogo da pop, tem tudo? A credibilidade. O reconhecimento que Taylor Swift é mais do que uma carinha laroca, mais que a face visível de uma máquina de produzir hits sempre bem vitaminados pelos produtores da moda, mais do que um produto apetecível mas de consumo rápido.
Não é também coincidência que o disco tenha sido feito nesta altura atípica das nossas vidas; e depois de vários problemas pessoais e profissionais enfrentados pela cantora, abrindo espaço para uma espécie de declaração de um novo começo.
Folklore, o disco lançado de surpresa, é de certa forma uma resposta a estas dúvidas, e um passo na direcção de uma afirmação estética diferente de tudo o que havia feito até aqui. Composto e gravado em quarentena, neste período absurdo que suspendeu os ritmos das nossas vidas, Folklore deve muito do que é aos colaboradores escolhidos por Swift. Acima de todos Aaron Dessner, o multi-instrumentalista dos National que é também um produtor de sucesso reconhecido e de bom gosto. Mas também Justin Vernon (Bon Iver) e o produtor dos últimos discos de Swift, Jack Antonoff.
A colaboração foi remota, com Dessner (que está em 11 das 16 faixas do disco) a enviar esboços de canções a Swift e esta a completar os temas, já com letras, de seguida. Em tempos de pandemia, esta foi a forma encontrada de ir trabalhando, sendo que o registo soa coeso e sem as costuras à vista.
Mas, afinal, que disco é este Folklore?
É um disco outonal, começando pela própria imagem de capa. O tom é acústico, mas não no sentido country de outrora. Há ecos, bastantes, do processo de composição que vemos como típico nos National, o que não deixa de ser natural e compreensível e, na verdade, ajuda quase sempre a elevar o nível médio do registo. É um disco efectivamente mais maduro que aquilo que conhecíamos de Swift, sem vestígio dos truques de produção que transformam uma canção trauteável num hit esmagador. Essa é, talvez, a maior diferença e maior surpresa. Desta vez, Swift não está empenhada em conseguir 10 singles de sucesso, em estar permanentemente a reclamar a nossa atenção com mais um efeito, um refrão de memória fácil, um slogan de Verão. Folklore é um disco de canções que soa íntimo e aconchegante. Temos cordas, piano, guitarra acústica e electrónicas muito discretas. Quase ouvimos a fogueira a crepitar ao fundo do quarto, numa qualquer cabana perdida no mato.
Também nos temas parece ter havido aqui uma maior ambição. As letras são mais crípticas, menos directas, com a cantora a recorrer a personagens e a entidades mais abstractas para contar histórias que, no fundo, serão sobre si mesma. Tudo certo, portanto. Ou não?
O problema é que ficamos sempre na dúvida acerca do que ouvimos aqui: é Taylor Swift uma artista diferente agora ou este disco é um feliz acidente de percurso? Quanto de Folklore é seu e quanto é o seu dinheiro, poder e magnetismo a comprar o talento de Dessner e de Justin Vernon? Quanto deste cozinhado é obra sua e quanto é alheio, como um cozinheiro que serve frangos comprados na churrasqueira da esquina?
Esta reivenção tem também o curioso efeito de ouvirmos Swift, sim, mas ouvirmos também registos vocais e exercícios que nos remetem para outras artistas. Lana del Rey e a sua última encarnação, sobretudo e muitas vezes, mas também Suzanne Vega, aqui e ali. O que só contribui para as dúvidas já evidenciadas: quanto é autêntico e quanto é exercício de estilo?
O tempo e os próximos trabalhos dirão se esta é a verdadeira Taylor Swift ou a nova Taylor Swift, que não persegue obcecadamente o single demolidor e prefere a subtileza à fórmula comprovadamente vencedora. Ou que este foi apenas um devaneio de pandemia ou um crachá de credibilidade “indie” numa carreira que já tinha tudo o resto. Não sabemos ainda a resposta.
O que sabemos é que este é um disco que se ouve bem do princípio ao fim, feito com bom gosto e sensibilidade. E que é o primeiro disco de Taylor Swift que pode ser consumido por inteiro por alguém já saído da adolescência. Já não é pouco, neste louco e inesquecível ano de 2020.
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