Herói do confinamento, optimista incorrigível mas de maneira nenhuma superficial, o charlatão-mor pode não salvar o mundo mas está numa missão de ajudar a puxá-lo para cima.
Se alguma alegria pôde ser encontrada no Grande Confinamento de 2020, um dos sítios onde ela brotou foi nas Twitter Listening Parties organizadas por Tim Burgess, nas quais milhares de fãs de música carregaram no “play” ao mesmo tempo e celebraram em conjunto com alguns dos envolvidos em centenas de álbuns as memórias, lendas, factóides, mas acima de tudo a música e a união em torno dela numa fase tão peculiar das nossas vidas. Mas para além disto, o frontman dos Charlatans tem um novo álbum a solo.
I Love the New Sky abre com um piscar de olho (que se repetirá algumas vezes ao longo do álbum) logo a duas referências imortais duma vez: a alusão óbvia no título da faixa “Empathy for the Devil” e a sequência de acordes na introdução a remeter para “Boys Don’t Cry” dos Cure. Instrumentalmente a distância é grande para a sonoridade dos Charlatans, com o tema a ser conduzido por piano, ukulele e violino, mas o positivismo de Burgess não se prende a abordagens estéticas e é praticamente impossível não bater o pé logo aos primeiros segundos, ou esboçar um sorriso ao ouvi-lo dizer “not there yet but it’s gonna work out fine”.
Igualmente saltitante, quase infantil no sentido de canção que se dedica a um filho, “Sweetheart Mercury” não é apesar disso simplista, com camadas sonoras a descobrir a cada audição e boas harmonias de voz, que já vinham da faixa anterior e se repetirão álbum fora. Segue-se “Comme d’Habitude”, guiada inicialmente pelo piano e voz com as já habituais harmonias a uma cadência mais lenta que nas faixas anteriores, mas que abre no refrão para um staccato ao estilo dos Sparks e fecha com um minuto deliciosamente hipnótico.
Uma introdução de piano que podia ter sido feita por Fiona Apple, uma parte A que podia ter sido feita por Jeff Tweedy e uma melodia no refrão que foi mesmo feita por Paul McCartney em “The Long and Winding Road”. Polvilhe-se com apontamentos de saxofone como Bowie gostava, despeje-se no copo misturador e o resultado é a quarta faixa “Sweet Old Sorry Me”. No entanto, Tim Burgess não tem muito tempo a perder em auto-comiserações (“Sweet Old Sorry Me” é a faixa mais curta do álbum) e salta imediatamente para um caleidoscópio Pop Art na faixa seguinte, adequadamente intitulada “Warhol Me”.
“Lucky Creatures” entra como uma marcha pontuada com aqueles sinos que só por um triz não transformam tudo aquilo em que entram numa canção de Natal, depois transforma-se noutra coisa completamente diferente, mais descontraída e potencialmente alusiva à década em que Burgess trocou o Reino Unido pela Califórnia. Outra prova da habilidade para distinguir uma mistura duma misturada é “The Mall”, à qual até se perdoa o refrão “They say that you can’t win them all / But you can if you’re at the mall” que poderia passar por idiota se não fosse a crítica subjacente ao consumismo. Em seguida, “Timothy” retoma o espírito mais contemplativo de “Sweet Old Sorry Me”, com um apontamento central “I can count all my friends on one hand / One of them lives in Japan” sobre o qual se pode perfeitamente cantarolar “Bright Eyes” (a canção de Art Garfunkel, não a banda).
À entrada para o terço final do álbum, “Only Took a Year” aborda um período de writer’s block que durou o tempo que diz no rótulo, mas num tom de celebração e alívio pelo seu final. Esta alegria transborda para o manual de positividade “I Got This”, matéria na qual Tim Burgess é um celebrado especialista com décadas de experiência, e se ele diz que trata do assunto, quem somos nós para duvidar?
“Undertow” contrabalança o ambiente mais melancólico e sombrio de todo o álbum com uma performance vocal jovial, mas como Burgess era incapaz de nos fazer a desfeita de fechar o álbum em baixo, “Laurie” é um último farol de optimismo, companheirismo e fantasia para ajudar a navegar pelo tortuoso 2020.
Sem comentários:
Enviar um comentário