Cazuza (1958-1990) dizia que não gostava do seu nome, Agenor, talvez por acha-lo feio, cafona. Mas logo mudou de ideia quando descobriu que um dos seus maiores ídolos, Cartola, também se chamava Agenor. No entanto, curiosamente, o grande sambista foi registrado com um erro gráfico, Angenor de Oliveira, um “n” num lugar em que não deveria existir. Por incrível que pareça, Cartola só teria descoberto o erro em 1964, já na vida adulta, no cartório, quando preparava a papelada para casar-se oficialmente com Eusébia Silva do Nascimento, mais conhecida como dona Zica, sua segunda mulher.
Mais velho de oito irmãos numa família muito pobre, Cartola nasceu em 1908, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Após morar algum tempo no bairro das Laranjeiras, aos nove anos, Cartola mudou-se com sua família para o morro da Mangueira. Foi lá, ainda criança, que Cartola conheceu Carlos Cachaça, um garoto um pouco mais velho do que ele que se tornaria amigo pra vida toda e um dos seus maiores parceiros nas composições de sambas.
Cartola na infância aos 12 anos de idade. |
Aos 15 anos, Cartola troca os estudos pelo trabalho e boemia. Foi aprendiz de tipógrafo, mas foi como ajudante de pedreiro que ganhou o apelido que o tornaria famoso. Ao trabalhar nos serviços de pedreiro, usava um chapéu-coco para proteger a cabeça do cimento. Foi daí que surgiu o apelido “Cartola”.
Quando tudo parecia bem, a vida de Cartola cai em desgraça. Os sambas que vendia, ainda que mantivesse o seu nome como autor, rendiam pouco dinheiro. Porém, a morte de Deolinda, sua primeira, e a rota de colisão com a direção da Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que ajudou a fundar, acabam fazendo-o deixar a favela do morro da Mangueira. Fica quase uma década sumido, chegando alguns a acreditarem que ele havia morrido. No final dos anos 1940, conhece dona Zica, uma antiga admiradora que o resgata do abandono e do álcool. É ela quem o leva de volta ao morro da Mangueira onde vão morar juntos.
O artista redescoberto
Em 1956, a vida de Cartola começaria a mudar. O jornalista Sérgio Porto (conhecido como Stanislaw Ponte Preta) o reconhece magro e mal vestido, trabalhando na rua lavando carros e como vigia de um prédio no Rio de Janeiro. Sensibilizado, o jornalista decide ajudar o sambista. Com a ajuda de Stanislaw, Cartola se apresenta em rádios, faz shows e dá entrevista para imprensa. Além de retomar a carreira artística, Cartola consegue emprego de contínuo num jornal com ajuda de Stanislaw e depois vai trabalhar no Ministério do Comércio.
Coma ajuda de amigos, Cartola e Zica abrem em 1963 o restaurante Zicartola que logo se tornaria um ponto de encontro de sambistas, jornalistas e intelectuais. Figuras como Nélson Cavaquinho, Elizeth Cardoso, Zé Kéti, Elton Medeiros, Paulinho da Viola foram alguns dos frequentadores ilustres. Apesar da boa comida e das animadas rodas de samba, o restaurante faliu, fechando as portas dois anos depois por má administração.
Bar e Restaurante Zicartola: ao centro Cartola acompanhado de Nélson Cavaquinho (de costas com o violão). |
Quanto à vida artística, Cartola recuperava cada vez mais o prestígio, principalmente entre as novas gerações. Firma parceria com o jovem Elton Medeiros que renderia clássicos do samba como “O Sol Nascerá”. Suas letras dotadas de uma grande sensibilidade poética deixavam a todos impressionados, ainda mais se tratando de um homem de vida sofrida e de poucos recursos.
Apesar do pouco estudo, Cartola era um grande leitor de poesia. Lia Castro Alves, Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade, Humberto de Campos, Gonçalves Dias, Vinícius de Moraes e Guerra Junqueira, este último, o seu poeta preferido. Toda essa bagagem literária acabou se refletindo na qualidade de seus versos, e certamente reside aí o fato de Cartola ter se tornado um compositor de altíssimo nível na música popular brasileira. Conseguia compor canções de dor de cotovelo sem cair na vulgaridade ou no dramalhão. Ao contrário, fazia isso através de versos dotados de grande elegância poética.
O prestígio renovado como compositor não só rendeu-lhe o interesse de artistas em gravar as suas músicas, mas também participações especiais cantando em gravação de discos de artistas como os de Elizeth Cardoso, em meados dos anos 1960. Mas até então, quase um sexagenário, Cartola ainda não havia gravado um álbum solo, um completo vacilo por parte das gravadoras.
Antes tarde do que nunca
Capa do primeiro e autointitulado álbum solo de Cartola, lançado em 1974. |
Somente em 1974, aos 66 anos, é que Cartola grava o seu primeiro e autointitulado disco, através da gravadora independente Discos Marcus Pereira. Recheado de composições do artista como “Acontece” e “Tive Sim”, e parcerias como “Disfarça e Chora” (Cartola e Dalmo Castele), “Alvorada”(Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Belo de Carvalho) e a já citada “O Sol Nascerá” (Cartola e Elton Medeiros). O álbum surpreende a crítica pela qualidade do repertório e se revela uma oportunidade para o público conferir num só disco, o Cartola intérprete.
No rastro da boa receptividade do álbum de estreia, em 1976 é lançado o segundo álbum que também leva o nome do artista e pela mesma gravadora. Assim como no álbum de estreia, o segundo álbum traz composições autorais de Cartola, parcerias e composições de outros autores. O álbum reúne um conjunto de composições antigas como “Sala de Recepção” (1941, Cartola) e “Não Posso Viver Sem Ela” (de 1942, Cartola e Alcebíades Barcellos), sambas inéditos até então como “As Rosas Não Falam” e “O Mundo É Moinho”.
A faixa que abre o segundo álbum de Cartola é a obra-prima “O Mundo É Um Moinho”, um samba-canção feito por Cartola dedicado a Creuza Francisca, afilhada da primeira esposa de Cartola, Deolinda. Em 1932, aos cinco anos, Creuza perdeu a mãe e passou a ser criada por Deolinda e Cartola. Erroneamente costumam afirmar que Cartola compôs “O Mundo É Um Moinho” ao descobrir que sua filha adotiva havia se tornado uma prostituta. Na verdade, Cartola fez a canção quando a filha, já adolescente, quis deixar a casa dos pais adotivos e ganhar o mundo. A letra revela a preocupação de um pai com as armadilhas que o mundo lá fora poderia reservar para a sua filha.
“Minha” é sobre desilusão, rejeição e decepção, temas constantes nos sambas de Cartola (“Minha / ela não foi um só instante / como mentiam as cartomantes / como eram falsas as bolas de cristal”). “Sala de Recepção”, samba em que Cartola canta com a filha Creusa Francisca, é uma ode à Estação Primeira de Mangueira, escola de samba fundada por Cartola (“Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / e as outras escolas até choram / invejando a tua posição), e ao mesmo tempo ao morro da Mangueira (“ Habitada por gente simples e tão pobre / que só tem o sol que a todos a cobre / como podes, Mangueira cantar?”). Desilusão e decepção voltam a dar as caras em “Não Posso Viver Sem Ela”, mas num misto de raiva, amor e perdão (“... mas não faz mal eu lhe perdoo outra vez / meu coração vive reclamando noite e dia / por isso eu peço que ela volte para a minha companhia”).
Filha e pai: Creuza e Cartola no estúdio durante as gravações do segundo álbum do "poeta do morro", em 1976. |
No samba-canção “Peito Vazio”, uma das mais bonitas faixas do álbum, Cartola procura sair do fundo poço de um fim de um relacionamento prometendo dar a volta por cima (“Vou seguir os conselhos de amigos / e garanto que não beberei mais / e com o tempo essa imensa saudade que sinto se esvai”). Desprezo, ingratidão e arrependimento estão presentes nos versos do samba de gafieira “Aconteceu” (“... hoje ela chora tudo que perdeu / e chorando veio me pedir perdão / fica para ela a lição”).
Sem sombra de dúvidas, a grande canção do álbum é “As Rosas Não Falam”, onde Cartola mostra toda a sua veia poética em versos tão belos e muito bem construídos (“Queixo-me às rosas / Mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti”). As rosas são as testemunhas da dor da solidão do poeta. É não só a grande canção do álbum, mas a grande canção da carreira de Cartola.
Dona Zica e Cartola. |
Dor de cotovelo e sofrimento amoroso dão o tom de “Sei Chorar”, enquanto “Ensaboa” é um canto de trabalho, onde Cartola conta com a participação mais uma vez da sua filha adotiva Creusa Francisca. A canção parece fazer uma alusão a Deolinda, a primeira esposa de Cartola, madrinha e mãe adotiva de Creuza que trabalhava como lavadeira. “Senhora Tentação” versa sobre os efeitos incontroláveis da paixão. Fechando o álbum, “Cordas de Aço” é um samba-canção onde Cartola presta homenagem ao seu fiel amigo: o violão.
O segundo álbum de Cartola foi muito bem recebido pela crítica e pelo público, a ponto de levar Cartola a fazer no Teatro Galeria, no Rio de Janeiro, a sua primeira temporada de shows solo, seguida de uma turnê nacional que durou quatro meses. Ao longo do tempo, o álbum passou a figurar nas listas dos discos mais importantes da música brasileira, como a da edição brasileira da revista Rolling Stone, ficando 8º lugar na lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasileira promovida pela publicação.
Depois deste segundo álbum, Cartola ainda gravou mais dois álbuns, Verde Que Te Quero Rosa (1977) e Cartola 70 Anos (1978). Em 1980, Cartola falece aos 72 anos.
Faixas
Lado A
- "O Mundo É um Moinho"
- "Minha"
- "Sala de Recepção" (participação: Creusa)
- "Não Posso Viver Sem Ela" (Cartola – Bide)
- "Preciso Me Encontrar" (Candeia)
- "Peito Vazio" (Cartola - Elton Medeiros)
Lado B
- "Aconteceu"
- "As Rosas não Falam"
- "Sei Chorar"
- "Ensaboa" (participação: Creusa)
- "Senhora Tentação" (Silas de Oliveira)
- "Cordas de Aço"
Todas as faixas são de autoria de Cartola exceto as indicadas.
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