O grupo holandês Focus é com certeza o maior grupo de rock progressivo que a Holanda forneceu ao mundo, tanto por conta da música como por conta da técnica e qualidade individual de seus músicos. Uma carreira cheia de altos e baixos, com mais de dez discos que começaremos a abranger a partir de hoje, com o período áureo dos holandeses, nos anos 70, comandados pela dupla Thijs van Leer (órgão, piano, flauta, mellotron), Jan Akkerman (guitarra, violão), até a saída do último em 1976. Posteriormente, em uma segunda parte, traremos a partir do momento quando Akkerman retorna ao grupo nos anos 80, saindo para uma carreira solo de relativo sucesso, deixando o legado para Van Leer governar sozinho.
Jan Akkerman, Thijs Van Leer, Hans Cleuver e Martin Dresden
A estreia dos holandeses é um aperitivo humilde perto da importância que o grupo teria no ano seguinte para o rock progressivo. Conhecido também como In and Out of Focus (nome dado ao lançamento internacional do álbum), o LP tem em sua formação além de Van Leer e Akkerman, Martin Dresden (baixo, vocais) e Hans Cleuver (bateria), e apresenta jóias instrumentais como “Focus (instrumental version)“, com solos simples e encantadores da guitarra, e “Anonymous”, que seria a gênese de uma Maravilha Prog lançada dois anos depois através dos solos individuais de cada músico. Cleuver apresenta sua voz na jazzística “Happy Nightmare (Mescaline)“, “Focus (vocal version)”, seguindo as mesmas linha de “Focus (instrumental version)”, e nas sessentistas “Sugar Island”, “Black Beauty” e “Why Dream“, ambas cheirando a mofo psicodélico londrino, com leves aromas do flower-power californiano. A guitarra de Akkerman é o principal destaque em todo LP, mas é inquestionável a fundamental participação da flauta e do órgão de Van Leer, criando o marcante som do grupo. Na Alemanha, o álbum trouxe “House of the King” como faixa adicional, uma canção que marcou os fãs por ser muito similar ao que o Jethro Tull fazia na mesma época, sendo fácil encontrar pessoas que confundem as bandas quando ouvem essa canção. Os Estados Unidos, lançaram o álbum no mesmo formato que a versão alemã, porém com as canções em ordem alterada. Existem diferentes capas desse álbum espalhadas pelo mundo, algumas você pode conferir aqui. A capa que estampa esse artigo é a da versão original holandesa. “House of the King” acabou sendo o primeiro sucesso internacional do Focus, apesar de ter saído apenas como compacto em seu país.
Como o grupo não emplacou no primeiro álbum, Akkerman decidiu abandonar o navio, e montou uma nova banda, acompanhado de Pierre Van der Linden (bateria) e Cyrill Havermans (baixo, vocais). Porém, Dresden e Cleuver também resolveram abandonar Van Leer, que se juntou aos amigos de Akkerman, nascendo a segunda formação do Focus.
Com esta nova formação, o Focus muda totalmente sua forma musical, apostando no rock progressivo instrumental e deixando a voz apenas para servir como um instrumento a fazer vocalizações complementares nas linhas melódicas criadas pelo órgão e guitarra. A única canção com letra é a experimental “Moving Waves”, tendo Van Leer na posição de vocalista e pianista, os únicos instrumentos da canção. Foi com Focus II que o Focus alcançou seu status internacional, principalmente por conta de “Hocus Pocus“, uma peça fantástica, na qual Van Leer exibe pela vez primeira toda a graça de suas vocalizações em yodel, algo que marcou a carreira do grupo a partir de então, e que chegou na nona posição nos Estados Unidos. A sequência de solos vocais divididas com os solos de guitarra ainda hoje agita muitas festas mundo afora. Mas Focus II não sobrevive apenas disso, já que também tem um lindo momento solo de Akkerman, batizado de “Le Clochard”, no qual ele abrilhanta o ouvinte com uma peça ao violão clássico, acompanhado por longos acordes de órgão, e a beleza de “Janis”, destacando Van Leer na flauta. Os holandeses não viraram sinônimo de progressivo por acaso, e o lado prog aparece na sequência de “Focus”, chamada “Focus II“, uma leve balada progressiva com aproximações fortes no jazz, destacando os crescendos de órgão e guitarra, provando mais uma vez todas as qualidades do injustiçado Akkerman, já que raramente ele aparece nas listas de melhores guitarristas de todos os tempos, e no ápice do LP, a Maravilhosa suíte “Eruption“, que através de seus vinte e três minutos, e dezesseis partes, faz uma adaptação da ópera Euridice de forma brilhante. Akkerman continua o centro das atenções, com a capacidade de sair de uma erupção sonora de solos rasgados para a suavidade de um lago tranquilo, através do uso do botão de volume e leves bends. A capa principal aqui presente é de Focus II, e se você estranhou não ser a capa deMoving Waves, é por que Focus II é a versão original holandesa, e Moving Waves é a versão internacional.
Cyril saiu do grupo em 1971, após o encerramento da primeira turnê europeia do grupo, sendo substituído por Bert Ruiter, dando origem então a terceira e mais famosa formação dos holandeses, a qual gravou seu álbum mais ambicioso no ano seguinte.
Para muitos, esse é o melhor álbum dos holandeses, e qualidades não faltam para garantir essa primeira posição. A entrada de Ruiter trouxe a possibilidade das expansões vocais do yodel, e também motivou Van Leer a se soltar mais. Um exemplo é a abertura, com “Round Goes the Gossip“, quando na primeira parte da canção ele apenas entoa o nome da mesma, e na segunda apresenta seu lado soprano cantando em latim. Essa mesma faixa mostra que o jazz misturado ao progressivo está cada vez mais presente nas composições do grupo. “Carnival Fugue” é uma peça clássica comandada pelo piano, com tímida participação dos demais membros do grupo, transformando-se em um jazz fusion em sua segunda parte. A música clássica tambem dá o ar da graça na “Elspeth of Notthingham“, com acordes de violão inspirados na música celta, e com a participação da flauta em alguns trechos. A arrepiante união do violão clássico e da flauta aparece também em “Love Remembered”, capaz de arrancar lágrimas de qualquer ser vivo nesse planeta. Focus III trouxe o terceiro grande sucesso dos holandeses, “Sylvia”, canção originalmente composta para fazer parte de um programa de televisão, mas que acabou sendo bastante popular principalmente em sua Terra Natal, com um riff poderoso e uma melodia grudenta da guitarra, e que alcançou a quarta posição nas paradas britânicas. A dupla “Focus III” e “Answers? Questions! Questions? Answers!” mostra Akkerman e Van Leer duelando em solos inesquecíveis, acompanhados pela formidável cozinha Ruiter/Van der Linden. Falando em dupla, o álbum foi lançado originalmente no formato duplo, isso graças a inclusão da Maravilhosa“Anonymous Two“, uma incrível jam de mais de vinte e seis minutos que ocupa todo o lado C e boa parte do lado D do vinil, e onde o quarteto apresenta-se com solos individuais, tendo como base o riff de “Anonymous”, lançada no primeiro álbum. Do primeiro álbum também foi resgatada “House of the King”, que finalmente era lançada em um álbum oficial do grupo na Holanda. Existem diferentes capas de Focus III mundo a fora, e as duas apresentadas aqui são a versão original holandesa (primeira) e a versão internacional lançada na América do Norte (segunda).
A segunda turnê europeia aconteceu a partir do segundo semestre de 1972, e foi registrada no essencial at the Rainbow (1973), trazendo um show do grupo gravado no Rainbow Theatre em Londres, e que foi lançada também em VHS, sendo esse vídeo o responsável pela difusão do Focus em países da América do Sul e Ásia
O escocês Collin Allen (ex-Stone the Crows) substituiu Van der Linden, e essa nova formação continuou inspirada, lançando este que julgo ser o melhor LP do grupo. Nele, temos o hardão de “Harem Scarem”, a beleza indescritível de “La Cathedrale de Strasbourg“, com Van Leer sobressaindo-se ao piano e nos vocais, as experimentações psicodélicas-clássicas de “Birth”, apresentando Van Leer no cravo, e fazendo belezuras junto de Akkerman quando pula para o órgão e a flauta, e a música clássica da vinheta “Delitiae Musicae“, um magnífico momento somente com alaúde e flauta. Porém, nada supera o que o quarteto registrou no lado B desse vinil, que é a suíte-título. Com trechos inspirados em “Variations on a Theme by Haydn”, de Joseph Hayden, a suíte é dividida em seis partes. Difícil dizer qual o principal momento dessa Maravilha, já que desde a introdução, com as linhas de baixo de Ruiter, o andamento suave dos primeiros minutos, o riff marcante, os solos vocais de Van Leer, o órgão e a flauta alimentando o cérebro com notas divinas, a pegada na guitarra de Akkerman durante a segunda metade da canção, a epopeia emocionante do encerramento, e Collin Allen fazendo ninguém sentir saudades de Van der Linden, são alguns dos pontos que me tornaram fã dos holandeses. Um dia certamente irei comentar sobre “Hamburger Concerto” na seção Maravilhas do Mundo Prog, e por enquanto, deixo apenas a dica para apreciarem mais um daqueles momentos mágicos na música. O relançamento em CD trouxe uma faixa bônus, “Early Birth”, que é a versão original de “Birth”, sem a introdução com o cravo.
Mais uma mudança na formação, novamente na bateria, agora com o americano David Kemper substituindo Allen, que participa em apenas uma faixa, “I Need a Bathroom”, uma balada funk que tornou-se a única canção do grupo a ser cantada por Ruiter. O álbum parece contaminado pela onda disco, com muitos sintetizadores, a utilização constante do vocoder (instrumento que imita a voz humana) e canções curtas que fogem bastante dos padrões esperados para o Focus, lembrando grupos como Sly & The Family Stone ou Funkadelic, mas não deixa de ter seus momentos bons, como a peça clássica “Father Bach”, somente com órgão e guitarra, o suingue da faixa-título, a sutileza de “Focus IV”, sem contar com as linhas de suas antecessoras, mas ainda assim muito bela, e “No Hangs Up“, com certeza a faixa mais Focus de Mother Focus. A dupla “Soft Vanilla” e “Hard Vanilla” parecem trilha sonora de filme brasileiro dos anos 70, diferenciando apenas pelo instrumento utilizado para o solo principal (flauta sintetizada no primeiro e vocoder no segundo), mas “Bennie Helder” é uma das amostras positivas de como misturar elementos clássicos com o funk e a disco-music, enquanto Akkerman convence que ainda existe genialidade na dupla “Someone’s Crying … What?” / “All Together … Oh That!“. Já “My Sweetheart” e “Tropical Bird” acabam sendo manchas negras na carreira do grupo, que começava a rumar para seu fim.
Akkerman pediu as contas pouco depois, sendo substituído pelo belga Philip Catherine, dando origem a uma nova fase para o Focus. Antes, por esforços do produtor Mike Vernon, mais um álbum com Akkerman chegou na praça, no ano de 1976.
Esse álbum é uma coletânea de canções que acabaram ficando de fora dos lançamentos oficiais. Vernon não mediu esforços para manter a chama do Focus acesa durante o período de instabilidade, e resgatou obscuridades não lançadas oficialmente. O lado A foi gravado em duas semanas do ano de 1973, e nele ouvimos uma sequência interessante de canções programadas para compor o quarto álbum dos holandeses. “P’s March” alterna-se entre solos de flauta e guitarra, e “Focus V” traz as fontes jazzísticas e o andamento que criaram a base musical do Focus. O melhor fica para “Can’t Believe My Eyes” e “Out of Vesuvius“, ambas experimentações virtuosísticas de Akkerman, inseridas em um andamento sombrio e tenso (a primeira) e em uma levada dançante (a segunda). O lado B é mais diversificado, trazendo “Spoke the Lord Creator”, gravada em 1970, e que foi a primeira tentativa de recriar “Variations on a Theme by Haydn”, “Ship of Memories”, um breve solo de bateria e órgão de igreja feito por Van der Linden, “Red Sky at Night”, tendo um belo solo de Akkerman, e “Glider“, versão original de “Mother Focus” e que particularmente considero melhor que a versão registrada no álbum homônimo, principalmente pela exploração dos yodels. Nessa canção, Akkerman toca Sitar elétrico, o que também deu um efeito diferente, e conta com Van der Linden na bateria. “Crackers” é da época de Mother Focus, enaltecendo o lado funk-fusion que predominou no último álbum lançado com Akkerman nas guitarras, sendo uma canção de menor qualidade perto das demais. A contra-capa do álbum apresenta um interessante texto de Mike Vernon contando sua experiência com o grupo e os caminhos que levaram ao lançamento de Ship of Memories, o que é um bom complemento para quem quer se aprofundar na história da banda.
A saída inesperada do guitarrista Jan Akkerman em 1976 foi um grande choque para o Focus. O guitarrista mergulhou em uma carreira solo de destaque, e mesmo com um substituto a altura, o guitarrista belga Philip Catherine, as coisas não estavam nada bem. O jeito foi arriscar na loteria, e assim, o grupo manteve-se na ativa, unindo-se ao cantor pop americano P. J. Proby e lançando seu sétimo disco de estúdio, o primeiro sem Akkerman, no ano de 1978.
Bert Ruiter, David Kemper, Thijs Van Leer e Philip Catherine (1977)
Trazendo na formação Thijs Van Leer (flauta, teclados, vocais), Bert Ruiter (baixo, vocais), Philip Catherine (guitarras), Steve Smith substituindo David Kemer na bateria e a adição do excelente Eef Albers às guitarras, além da voz principal de PJ Proby, os holandeses surpreenderam com um álbum muito diferente do que havia sido apresentado nos discos anteriores, principalmente no fraco Mother Focus (1975). É difícil classificar esse álbum, pois existem momentos preciosos e outros que em nada poderiam estar presentes na Discografia de um gigante como o Focus. A voz de Proby é um estranho no ninho para quem estava acostumado com as vocalizações em yodel de Van Leer, mas por outro lado, as guitarras de Albers e Catherine deram uma nova cara para a banda, que no geral, inspira-se no som do final dos anos 70, praticando um som próximo ao de grupos como Weather Report e Eleventh House, e aqui cito a velocidade jazzística de “Sneezing Bull“, com Van Leer exibindo-se na flauta (coloque para um amigo e duvido que ele não diga que é Jethro Tull o que está rodando), a exuberância zappiana de “Maximum”, com solos de Catherine e Van Leer, a linda “Orion”, com Ruiter e Albers fazendo o solo principal juntamente, na alucinante “Night Flight“, com Albers gastando seus dedos em um solo impressionante, e outros mais voltados para canções dançantes ( “Tokyo Rose”, “How Long” e “Wingless“) e baladas mela-cuecas (“Eddy” e “Brother”) que em nada acrescentam ao fã dos primeiros álbuns. Pela parte instrumental, temos um excelente trabalho, e se você retirar as duas últimas canções com vocais citadas nesse texto, Focus con Proby é um ótimo disco. O problema é que aturar “Eddy” e “Brother” é um constrangimento e tanto para quem já pulou com “Hocus Pocus”.
O grupo fez uma curta turnê, mas em seguida, Van Leer anunciou o encerramento das atividades do Focus, seguindo para uma carreira solo de relativo sucesso. O retorno acontece surpreendentemente em meados dos anos 80, como veremos daqui a algumas semanas, na segunda parte dessa Discografia Comentada.
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