sábado, 5 de agosto de 2023

Bob Marley – Survival (1979)

Depois do exílio e do maior sucesso da sua carreira, Marley volta à Jamaica e faz o seu disco mais político, um hino à unidade africana

Bob Marley passou boa parte do ano de 1977 em Londres, depois da tentativa de assassinato sofrida no final de 76, na Jamaica. Esse período londrino deu dois discos: Exodus, de 77, e Kaya, do ano seguinte.  Se o primeiro é considerado por muitos como o trabalho mais bem conseguido da sua carreira, juntando de forma quase igualitária o Marley político e o Marley “romântico”, Kaya ficaria marcado por um som mais leve, mais desprendido, mais “pop”.

Algumas vozes se levantaram, críticas. Estaria Marley, o lutador, conquistado por Londres e pela fama que não parava de crescer, esquecendo a sua mensagem e as suas raízes? Kaya, depois do monumento que era Exodus, parecia dar força a esta teoria, mas na verdade as faixas de ambos os discos foram gravadas na mesma altura, com os mesmos músicos, no mesmo lugar, em Londres. Entre tudo o que foi gravado, Marley e Chris Blackwell, o seu produtor e patrão da Island Records, decidiram o que iria para cada disco.

Esse tempo longe de casa foi, segundo muitos relatos, um período abençoado para Marley. Foi uma forma de processar, lentamente, o atentado que havia sofrido, o significado da sua música, o caminho a seguir. Os anos seguintes seriam importantes por vários motivos, entre eles o regresso à Jamaica, e a participação cívica no violento e efervescente ambiente político local; e a viagem a África, nomeadamente à “pátria espiritual”, a Etiópia, a terra de Haile Selassie, o “santo” da cultura Rasta.

Marley foi a África várias vezes. No final de 78, foi ao Quénia e à Etiópia. Neste país, ficou hospedado numa área gigantesca destinada por Selassie para os povos negros americanos que quisessem regressar a África. Era o centro da ideologia de Marley, a libertação do homem negro que havia sido levado à força para as Américas, e o seu regresso a casa, a África. Não foi a única viagem do músico ao continente. Chegou a ir ao Gabão, convidado pelo presidente Omar Bongo, para tocar na sua festa de aniversário. Bongo era um ditador que oprimia o seu povo, algo de que aparentemente Marley e a sua banda só se aperceberam já no país. Outro facto curioso dessa visita foi o envolvimento amoroso de Marley com a filha do ditador, Pascaline Bongo, que acabou por ser importante no reforço da ligação do cantor ao continente africano e às suas história e cultura. Outra famosa visita foi ao Zimbabué, quando este se tornou independente e largou o nome de Rodésia, vindo depois a ficar nas mãos de Robert Mugabe.

Depois da leveza de Kaya, a resposta teria de vir de todos estes acontecimentos, com África e a Jamaica no centro da acção. Survival, originalmente chamado de Black Survival, seria o primeiro tomo de uma planeada trilogia política que descreveria o caminho do homem negro, da sobrevivência à sublevação (o disco seguinte chama-se Uprising) e, no final, a vitória, a libertação.

Se dúvidas houvesse do sentimento político deste disco, bastaria olhar para a capa. Aí ostentam-se as bandeiras de todos os países africanos, à excepção de um: a África do Sul, sob o domínio do apartheid, ficou de fora da fotografia, e prontamente baniu as vendas do álbum no país. Mas há outra imagem fundamental na capa de Survival: uma faixa a preto e branco, onde surge o nome do disco, e que retrata uma ilustração do que era o espaço de “armazenamento” de escravos que iam de África para a América, a bordo do navio Brookes, de Liverpool, no século XVIII.

Com este enquadramento, as músicas de Survival surgem tematicamente ligadas, fazendo deste, provavelmente, o álbum mais coeso da discografia de Marley. Gravado no seu estúdio Tuff Gong, na Jamaica, praticamente sem a presença do já mencionado Blackwell, o músico estava completamente à vontade para agir (a sua única concessão foi deixar, relutantemente, cair a palavra “Black” do título do disco).

O arranque é com “So much trouble in the world”, uma das músicas mais bonitas e sentidas de toda a sua carreira, mostrando mais uma vez a extraordinária capacidade de Marley em passar uma mensagem profunda sob uma instrumentação doce e relaxada. “Zimbabwe” é dedicada à luta pela independência do país, que na altura ainda era dominado por colonos brancos. Não é de estranhar que este tema fosse ouvido na selva, pelos guerrilheiros, e que Marley fosse o convidado de honra da festa/concerto que celebrou o fim da Rodésia e o nascimento do Zimbabué, em Abril de 1980. Segue-se “Top Rankin”, uma crítica aos chefes de máfia negros da Jamaica que, ao serviço dos dois partidos rivais espalhavam o terror por entre a população. Um pedido de união e uma chamada de atenção: “They don’t want to see us unite” e, mais tarde, “All they want us to do is keep on killing one another“.

“Babylon System” é a descrição do mal no mundo, aquilo que impede o homem de ser bom e livre. É um pedido para que o homem negro se revolte, corte de vez com a escravatura mental e impeça que o “sistema vampiro da Babilónia” se continue a alimentar do sangue dos sofredores. Segue-se a faixa-título, com o slogan “we’re the survivors, the black survivors“, um hino contra a desigualdade social e económica, que tem como resultado o sofrimento dos mais vulneráveis, algo que ainda hoje é tão actual. “Africa Unite” é exactamente o que diz, uma exortação ao levantamento dos países africanos face ao domínio colonial que ainda não tinha acabado, com Marley a juntar o desejo o regresso de todos os africanos à terra-mãe.

“One Drop” é uma luz de esperança no meio da luta. Ao mesmo tempo que pede resistência contra o sistema, assegura que “Deus nunca nos desapontará”. De seguida, “Ambush in the night” dá-nos a primeira vez que Marley reage musicalmente ao atentado à sua casa, ao qual sobreviveu apesar de ter sido baleado. Mais do que a sua traumática experiência pessoal, a mensagem é alargada à violência na Jamaica, provocada por líderes políticos gananciosos para quem a vida dos jamaicanos pouco ou nada valia.

Survival fecha com “Wake up and live”, uma incursão suave pelo funk à moda da Jamaica, possivelmente uma influência de James Brown, de quem Marley era um grande fã. Depois de nove faixas de luta, desespero e sofrimento, a última canção do disco é um hino à vida mas também à capacidade de resistir às contrariedades, com certeza na vitória. “Rise, ye mighty people, there’s work to be done” é a frase-chave.

O disco mais político até então da carreira de Marley é servido com uma música que nos hipnotiza. Depois do salto qualitativo das gravações feitas em Londres, a produção de Survival continua a ser excelente, embora talvez um pouco menos polida e artificial. A banda está mais coesa que nunca e, num trabalho tão marcado pelo sangue e pela angústia, as vozes incríveis das I-Three (o coro feminino no qual pontuava Rita Marley, mulher de Bob) e a construção musical dão ao conjunto uma doçura e uma beleza difíceis de igualar.

Mesmo que não se prestasse atenção às letras, Survival seria sempre um grande disco e uma delícia de ouvir. Ouvindo as palavras, temos perante nós uma obra cuja beleza sonora é igualada pelo seu profundo significado político.



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