domingo, 6 de agosto de 2023

Fiona Apple – Fetch The Bolt Cutters (2020)

 

Ao quinto álbum, Fiona Apple apresenta a sua melhor música. Fora dos limites reservados aos comuns mortais, a nova iorquina volta a mostrar que o seu o planeta tem uma bela banda sonora. Um dos candidatos a disco do ano.

Viver num Universo paralelo terá vantagens. Imagino que as chatices sejam menos, que não se corra risco de apanhar um qualquer vírus, que não seja preciso perder tempo com preocupações mundanas que a nós, meros mortais, nos consomem. Melhor ainda, só mesmo se mesmo vindos de nave espacial, aterrados de surpresa, conseguirmos que o mundo terráqueo nos venere, nos receba de braços abertos, com vénias até para os mais afortunados. É o caso de Fiona Apple, a mulher de 42 anos que aos 19 já ganhava Grammys, a cantora que assim que cheirou o topo da indústria musical terrena se afastou, a que esperou quase dez anos para lançar o sucessor de Idler Wheel. A mesma que lançou Fetch the Bolt Cutters sem aviso e mesmo assim colecionou vénias. 10 em 10 diz a Pitchfork. Deve ser boa a vida no Universo de Fiona.

Há quem se supere e quem bloqueie, mas poucos lhe ficam indiferentes. Os humanos, é sabido, acusam a pressão, entre nós até os há que adoecem com stress. Fiona é imune. Tidal, em 1996, valeu estatuto de estrela da música alternativa (assim se chamava nos idos 90), Fiona recebeu os prémios, aceitou o estatuto e três anos depois lançou When the Pawn…, o seu trabalho menos conseguido e nem por isso mau. Aprendeu. Corrigiu o passo e esperou seis anos para apresentar Extraordinary Machine, então o seu melhor trabalho. E descansou até 2012 quando nos presenteou The Idler Wheel, voltando a recolher elogios vindos dos muitos fiéis. Agora, a espera foi ainda mais longa, o disco chegou em formato digital e apenas com a promessa de uma edição física, chegou no espaço de Fiona, com o tempo de Fiona e direto para o topo da sua discografia. Fetch the Bolt Cutters é mesmo o seu melhor álbum.

O passeio pelo teclado que abre “I Want You to Love Me”, a primeira faixa, prepara-nos para um passeio onde se ouve spoken word, mas também o canto, onde se ouve rock e até hip hop. Onde se ouve Fiona no seu melhor, longe dos cânones que limitam os mortais, como “Shameika” o prova logo depois. E Fiona move-se num mundo próprio, o dela onde consegue músicas quase em registo de spoken word, mas com um subtil contrabaixo a garantir que a melodia nos fica na memória – “Fetch the Bolt Cutters”, no caso particular. Mas o manifesto de independência, não se fica pela declaração musical, pelo álbum ouve-se também a sua emancipação: em “Under the Table”, promete que não se calará, mesmo que seja inconveniente ao jantar onde nem queria ir; em “Relay” sente-se a agressividade contida, sustentada num ritmo nos soa africano. Surpresa? Mal chegámos a meio do disco e, a provar que Fiona até respeita algumas das nossas regras, também aqui o melhor ficou para o fim. Há “Ladies e Cosmonauts”, também “For Her”, as mais fortes candidatas a melhor faixa do álbum. E ainda “On I Go”. Na música que encerra Fetch The Bolt Cutters, Fiona reafirma o que já sabíamos – sabe que nada tem a provar, sente-se imune à pressão e exterior e deixa, subtilmente, o aviso: mais música, só quando lhe apetecer.

Surpreendente e a exigir várias voltas para lhe descobrir os segredos e as mensagens subliminares, Fetch the Bolt Cutters lembra-nos como é brilhante o Universo de Fiona e deixa-nos em suspenso, a pensar o que se seguirá. A nós, mortais, sem forma de contornar tempo ou espaço, resta esperar, tentar evitar crises de ansiedade e poupar energias a tentar prever o próximo passo da nova iorquina. Será o que lhe apetecer, chegará quando tiver tempo e provavelmente também ocupará o seu espaço nos tops dos discos do ano. Este já tem o espaço reservado.




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