Com El Bando Bueno cumpre-se um ciclo e projeta-se outro na discografia de Sr. Chinarro. É o que sentimos e pensamos sobre o seu recentíssimo álbum. O mundo não está para graças e Antonio Luque também não, mas isso, para nós que somos seus ouvintes, é motivo de grande prazer e satisfação.
El Bando Bueno é o décimo sétimo disco de estúdio de longa duração de Antonio Luque, mais conhecido artisticamente como Sr. Chinarro. Dois anos depois de Asunción, e também do best of Colección Permanente, o regresso às canções inéditas faz-se com mais dez, como quase sempre vem acontecendo ao longo dos anos. Essas duas mãos cheias de novos temas trazem-nos algumas novidades, mas também se encontra nelas o músico que bem conhecemos, com algumas das suas idiossincrasias sempre bem evidentes.
Depois dos três singles que foram saindo a conta gotas como forma de apresentação do álbum (a moda veio para ficar, isso parece claro), muito se esperava de El Bando Bueno, saído no passado dia 29 de maio. O Altamont ouviu o disco com a atenção merecida, como nas próximas linhas se lerá. Em plena pandemia, Sr. Chinarro resolveu sair à rua para nos deixar confinados à sua nova rodela musical, novamente lançada pela sempre ativa Mushroom Pillow.
Comecemos pelo que já conhecíamos, os avanços “Sábanas Santas”, “Una Famiglia Reale” e “Aplauso”. Três temas com enormes diferenças estilísticas, todos eles bastante fortes e previsivelmente anunciadores, como agora se confirma, de um álbum mais variado do que o muito uno Asunción.
“Sábanas Santas” deu-se a conhecer a dezasseis de abril e surpreende pelo seu jeito rumbístico (será este um neologismo altamontiano?), pelo refrão orelhudo e também pela letra inteligente e, em certa medida, acusatória. Percebe-se que Antonio Luque não está disposto a mostrar sorrisos num mundo cada vez mais cinzento e feio. “Quedan las manchas en el colchón / Donde está escrito que fue amor / Eso que nos sucedió”. É já um novo clássico da obra do maestro mor da chamada indie espanhola, se é que o termo ainda faz sentido. Experimente ouvi-lo sem se balançar de cima a baixo, ainda que timidamente, a ver se consegue. As palmas andaluzes e o acordeão não perdoam.
Depois, a seis de maio, saiu “Una Famiglia Reale”. A primeira coisa a referir é que não, não é um erro de escrita o que o título da canção apresenta (o que não seria caso virgem na discografia de Sr. Chinarro, embora não por culpa do próprio). A italianização do termo acentua o mundo farsante em que vivemos. As verdades e as mentiras dificilmente se distinguem e o mundo parece já habituado (bem ou mal, com ou sem proveito) a esta realidade twitteira, a este novo paradigma em rede da nossa pequena aldeia cada vez mais global. As “palabras siempre ambiguas” (o verso é da canção “Aplauso” e não de “Una Famiglia Reale”) de Antonio Luque servem na perfeição uma canção dançante, ritmada, com mais um refrão poderoso, mais um clássico emergente da vastíssima produção chinarra. Para o artista foi proveitosa a ambiguidade do verso “Sé mi princesa, Leticia”, sobretudo porque, foneticamente, Letizia Ortiz Rocasolano (o nome da Rainha consorte de Espanha) e o mencionado na canção estão muito próximos, e para mais a esposa de Filipe VI é uma confessa fã da música alternativa do nosso país vizinho, adorando Los Planetas e, estamos em crer, Sr. Chinarro, o que só lhe fica bem.
O último single de El Bando Bueno a ser conhecido foi o já referido “Aplauso”, tema a fazer recordar a synthpop alternativa dos New Order com um travo pós-punk gótico dos The Cure. Às zero horas de vinte de maio, a surpreendente “Aplauso” dava conta do novo namoro de Sr. Chinarro com os sintetizadores, coisa que se confirmaria em muitas outras canções do álbum. Já lá iremos. Para além da melodia festiva, da batida fria e forte, uma vez mais os versos merecem destaque. Sr. Chinarro anuncia-se como “traficante de placer”, expressão feliz e absolutamente correta para quem o aprecia. Depois, a vinte e oito do mês passado, veio ao mundo o que restava conhecer de El Bando Bueno.
E assim chegaram mais sete ótimas canções, algumas delas bem dignas da maior e melhor safra de sempre do artista que se deu a conhecer nos primeiros anos da passada década de noventa. É o caso de “Escorpio”, baladeiro tema que teria cabido bem em El Progreso, por exemplo, e que em El Bando Bueno também cabe e mostra ser um caso muito sério. Impossível não cantar, mesmo que em silêncio, para dentro, os versos “Y tuvimos que aprender / A no hacer daño / Y a no ser um par de extraños / Tu y yo”, já para não falar das guitarras e das linhas de sintetizadores que surgem após o refrão. Fabuloso! Talvez seja o tema que mais cresceu desde a primeira audição de El Bando Nuevo, embora já se apresentasse grande e poderoso na primeira escuta. Será uma canção-resumo de toda a carreira de Sr. Chinarro? Algo nos leva a pensar que sim…
Outro tema absolutamente fantástico, que acaba por parecer, num primeiro momento, um objeto sonoro algo estranho e bem à margem do conjunto das canções que apresenta El Bando Bueno, é “Teleraña”. De novo os sintetizadores a deixarem marca, de novo esse galanteio recente por essas máquinas e pelo seu som ochentero (estamos em crer que o próximo disco de Sr. Chinarro será ainda mais revelador do que agora dizemos) à maneira de uns Orchestral Manoeuvres In The Dark do período Dazzle Ships, por exemplo. Para além do inesperado ambiente sonoro da composição, a canção traz a voz de Sandra Rubio, que fazia parte do grupo de Sr. Chinarro no tempo de El Por Qué de Mis Peinados e de Noséqué-Nosécuántos, inesquecível sobretudo em “El Idilio”, dos mais bonitos temas de toda a carreira de Antonio Luque. Em “Teleraña”, e uma vez mais, Sr. Chinarro fala de si e do seu (nosso) estranho tempo. É das melhores canções do álbum. Densa e misteriosa, enigmática, capaz de causar calafrios.
Mas há mais. Há “Planeta B”, que começa em jeito de samba e se transfigura depois num pop-rock honesto com marcante letra ecologista. O aquecimento global está aí e por isso “quedarás muy frito” como é certo e sabido. É uma canção sobre o presente, não tanto sobre o futuro do mundo, que no entanto, não tenhamos ilusões, parece perspetivar-se escaldante e dantesco.
No lado B do disco, digamos assim, temos ainda “Depresión”, “Arlequín”, “No Recuerdo” e “La Odisea”, que termina o disco de forma triunfante. É mais um tema com grande balanço roqueiro, marcado por guitarras sóbrias e por um refrão orelhudo, e que traça, de forma algo autobiográfica, a trajetória de um homem e de um músico que morre de amores por Sevilha, a sua cidade natal, mas que se viu em trânsito por outros lugares de Espanha afastando-se dela por causa do calor (o aquecimento global, uma vez mais), por vezes sentindo-se um “emigrante térmico”, como referiu numa recente entrevista ao site Je Ne Sais Pop. Em “Depresión” volta a referir-se a Sevilha, e nos tempos deprimentes como os que passou em Espanha, em casa, durante o pico da pandemia do seu país, não se deixou ir abaixo e resolveu escrever uma canção sobre a única depressão que conhece, a do rio Bétis, ou Guadalquivir, com a sua extensa depressão geográfica. Em “Arlequín”, bonita canção de amor, volta a cantar que “Ahora mi futuro es gris”, para não destoar do tom pessimista do álbum. E, por fim, falta referirmo-nos a “No Recuerdo”, canção algo tímida, de contornos ainda difíceis de definir. É dar-lhe espaço e tempo para crescer e mostrar-se-á mais plena.
Uma (quase) última nota para salientar a capa do disco, um meme que Antonio Luque faz de si mesmo, enganador porque risível, e o disco / o mundo não está para grandes contentamentos. Nesse sentido, a imagem da capa é uma blague e revela o que o álbum tantas vezes afirma no seu interior. No quadro “El caballero de la mano en el pecho”, de El Greco, surge o rosto inusitado de Antonio Luque. Querem expressão mais fake (de fake news) e mais consentânea com o tempo em que vivemos?
No seu conjunto, El Bando Bueno é um disco de alguém que fez uma pausa para apreciar o mundo. Não gosta do que vê, mas transmite essa ideia de vertigem, de insegurança e de inquietação da forma mais bonita possível. Não há sorrisos, há angústia e há, sobretudo, a certeza de que a estupidez humana tem dimensão planetária e projeta-se de forma cada vez mais crescente. O álbum, segundo Antonio Luque, era para se chamar La Gente Es Tonta, e isso já é dizer o bastante sobre o que pensa e sente a propósito do planeta em que habita.
Em conclusão, a única verdade é esta: com Sr. Chinarro estaremos sempre em porto seguro. Isto tanto é válido para os ouvidos como para a alma. Para o corpo também, quando se arrepia ou tem vontade de um pasito de dança. Que siga fazendo música e cantando o que também sentimos e pensamos, embora sem cantarmos como ele e sem a grande arte que o caracteriza!
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