Keith Emerson não só é um instrumentista genial do ponto de vista técnico, mas também um arranjador visionário e artista completo. O The Nice foi seu primeiro grande laboratório, onde ele pode aplicar toda sua visão musical e maturá-la a ponto de obter o enorme reconhecimento junto a Carl Palmer e Greg Lake. Mas engana-se quem acha que o The Nice era apenas tapete voador para Emerson – seus companheiros (Lee Jackson, baixista, Brian Davidson, baterista) eram também músicos ousados e que deveriam constar do rol de referências dentre os músicos que elevaram o nível instrumental do rock na segunda metade dos anos 60. O The Nice teve vida curta (foram 4 discos em menos de 3 anos de existência) e foi bastante aclamado na época (há inúmeros registros de aparição da banda em redes de TV de vários países), mas não leva o devido crédito como um dos principais precursores do rock progressivo junto à Moody Blues, King Crimson, Procol Harum e Yes e seu nome ficou na sombra da enormidade que se tornou o Emerson, Lake & Palmer. Este texto visa trazer a tona o conteúdo avançadíssimo da discografia do The Nice no panorama de sua época e o quão influente ele foi.
The Thoughts of Emerlist Davjack [1967]
Gravado no outono do psicodélico 1967, a estreia do The Nice é o disco que mais carrega o espírito de época na breve carreira da banda. Ainda que traga inovações enormes e não seja devidamente reconhecido como um dos marcos inaugurais do rock progressivo, é o disco da banda que dialoga com maior naturalidade com o conjunto de discos que estava redesenhando os caminhos abertos pelos Beatles. A abertura com a faixa título é um ode ao pop ensolarado cunhado pelos Beach Boys em Pet Sounds, se valendo inclusive de referências a eles nos timbres, no uso das pausas da percussão e na estrutura da canção; já “Bonnie K” é pura anfetamina, emprestando grooves tanto do Spencer Davis Group quanto da nascente Jimi Hendrix Experience. As faixas que completam o lado A, “Rondo” e “War and Peace”, já são as digitais da banda, colocando os teclados de Keith Emerson no primeiro plano para desconcertar tanto o jazz-modal (“Rondo” é uma adaptação radicalizada de “Blue Rondo a La Turka” de Dave Brubeck) quanto o blues e canibalizar referências da música erudita (há citações à Bach e Mozart em trechos das duas músicas). A guitarra de Dave O’List é o que reforça o tom afetado do rock do período – há claras e propositadas desafinações, com o objetivo de acidificar toda a mistura. A retaguarda do som (a bateria de Brian Davidson e o baixo de Lee Jackson) também são o que de melhor eclodiu no rock em 1967, tão intensas quanto as de Mitchell-Reeding, Appice-Bogert ou Moon-Entwistle. Outros destaques do disco são as belas linhas vocais e a guitarra ácida de “Cry of Eugene” e as harmonias de “Flower King of Flies” fechando o disco.
Ars Longa Vita Brevis [1968]
Já logo no início de sua carreira (acompanhado a cantora americana P.P Arnold) o The Nice construiu uma forte reputação como live-act, especialmente pela forma performática e virtuosa com que Keith Emerson pilotava seu Hammond L-100, colocando-o como um contraponto à Jimi Hendrix na guitarra. O segundo álbum do grupo veio em julho de 1968, na esteira do sucesso e da polêmica com o single “America”, uma adaptação da peça de Leonard Bernstein (“West Side of Story”) enxertada com trechos de “New World’s Symphony”, de Dvorák, e no meio de uma tour da banda. Dave O’List foi demitido da banda por ter sido considerado pouco confiável para o posto e o grupo gravou o Ars Longa Vita Brevis sem ele (as partes de guitarra e violão foram gravadas pelo baixista Lee Jackson). O disco já abre com Keith Emerson ao piano e as rápidas batidas de “Daddy Where Did I Come From“, no qual o protagonismo dos teclados já põe as cartas na mesa. “Litte Arabella” é um swing jazz divertido e “Happy Freud” tem a pegada psicodélica e ensolarada que se ouve no disco anterior; já “Intermezzo from the Karelia Suite” é uma bela adaptação para a obra do compositor erudito Jean Sibelius (a adaptação foi sugerida pelo folk-singer Roy Harper, que era amigo da banda). O lado B do disco é o mais disruptivo momento do trabalho, com uma abismal releitura do “Brandenburg Concert nº 3“, de J.S. Bach, na qual o The Nice trabalha ferozmente junto a uma seção orquestral completa. Aqui já fica evidente o quanto Keith Emerson colocava-se milhas a frente de outros tecladistas do rock, seja em sua destreza para execução dos temas clássicos quanto por sua incrível capacidade de improvisação em harmonias jazzísticas. Diversas construções que Emerson utiliza na suíte que ocupa todo o lado B do disco seriam sedimentadas nas mais icônicas músicas do Emerson, Lake & Palmer alguns anos adiante. Ars Long Vita Brevis é um disco mais bem acabado e produzido que o anterior, assim como também mais virtuoso e ousado.
Nice [1969]
O terceiro disco do grupo abre intensificando as fórmulas do disco anterior com as reconstruções insolentes de temas eruditos e as apropriações escandalosas de temas alheios. Para começar, a própria banda tratou de dar uma nova versão a uma música de seu repertório, que havia saído como single ainda na época em que Dave O’List integrava o line-up: “Azrael (Angel of Death)” se transformou na psicodelia honky-tonky de “Azrael Revisited“. Em seguida, o disco brinda o ouvinte com a maravilhosa e introspectiva “Hang on to a Dream” (uma versão para a bela canção de Tim Hardin) e a incrível “Diary of a Empty Day“, inspirada na sinfonia de Eduardo Lalo (“Symphonie Espagnola”), com a improvável batida afro-jazz de Davidson e um lambisco flamenco no violão por Jackson. Em seguida, Keith Emerson frita seu Hammond com o tema jazzista “For Example” em uma pegada que seria reaproveitada na faixa “Blues Variations” de Pictures at an Exhibition; a faixa ainda contém enxertos de “Norwegian Wood” dos Beatles e da própria “America” com o naipe de metais que acompanha a banda. Só o lado A deste disco já representa o melhor que havia na música do The Nice em todo seu esplendor. O lado B traz o The Nice capturado pelo engenheiro de som Eddie Kramer em uma apresentação no Filmore East, em Nova York, apresentando a explosiva “Rondo” e uma versão orgásmica para “She Belongs to Me” de Bob Dylan. O disco foi lançado nos EUA com o título de Everything As Nice As Mother Makes It e uma capa diferente.
Five Bridges [1970]
Se nos lançamentos anteriores algum detrator pudesse colocar a prova a capacidade autoral de Keith Emerson e sua trupe, em Five Bridges a banda traz uma obra completa de Emerson, com o nome do álbum, escrita para a banda e orquestra. Em 5 movimentos, a peça foi gravada em um concerto da banda acompanhada por orquestra na Inglaterra em outubro de 1969, retratando as 5 pontes que cruza o rio Tyne, nos arredores de Newcastle. A suíte é simplesmente incrível, especialmente o último movimento, no qual há formidáveis cruzamentos entre banda e orquestra. O lado B traz uma nova versão de “Intermezzo: Karellia Suite”, desta vez, com apoio da orquestra e ainda mais impactante que a anterior registrada em Ars Longa Vita Brevis e fecha com o estilo irreverente de “One of Those People“, a única gravada em estúdio. O lançamento do disco só ocorreria em junho de 1970, com a banda já desfeita. Emerson considerava os vocais de Lee Jackson limitados para suas pretensões e que o The Nice já tinha esgotado suas possibilidades musicais enquanto conjunto. Enquanto Five Bridges chegava as lojas, Keith Emerson já ensaiava e compunha com Greg Lake e Carl Palmer.
Elegy [1971]
Elegy é um lançamento póstumo; Keith Emerson, àquelas alturas, já voava com o Emerson, Lake & Palmer, pisando como gigante em reconhecimento por público e crítica. A bela capa do estúdio Hipgnosis (famoso posteriormente por capas de Led Zeppelin, Pink Floyd, UFO, entre outras e que também assina a capa de Five Bridges) não tira exatamente o disco de seu viés caça-níqueis. A maioria das faixas é retirada de registros ao vivo de 1969 e tem qualidade de som irregular. Obviamente, em se tratando do conteúdo musical, continuamos com música de alto nível. O disco abre com uma longa versão de “Hang on to a Dream”, no qual a banda dispensa preliminares e se acaba na seção instrumental do miolo da música; em seguida, uma releitura em piano jazz-prog para a linda “My Back Pages“, dos Byrds; temos também a adaptação para o terceiro movimento (“Pathetique”) da 6ª sinfonia de Tchaikovisky, que era frequente nas apresentações do grupo e também apareceu em Five Bridges (neste caso aparece apenas sendo executada pela banda, sem orquestra) e outra faixa indispensável no repertório de palco do grupo, “America“.
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