A obra-prima de Badu subverte as regras da neo-soul. O R&B moderno a mergulhar de novo no frémito do desconhecido.

Erykah Badu é a maior, rainha do R&B alternativo, ícone do afrocentrismo cool, deusa da terra e da fertilidade, e dona da voz mais interessante da sua geração: anasalada, fumarenta e de fraseado inventivo à Billie Holiday.

Erykah não sabe fazer maus discos, nem sequer más canções, o seu gosto sofisticado e orgânico não a deixam. O que não nos impede de criticar algum conservadorismo estético na sua obra, por vezes, demasiado reverente para com a soul, funk e jazz dos dourados anos 70 (por mais que a filtre com a sensibilidade moderna do hip-hop).

Talvez por isso amemos tanto o seu quarto disco, aquele cujo compromisso entre passado e futuro, tradição e experimentalismo, é mais bem conseguido. Colaborando com a nata do hip-hop underground, nunca as batidas num álbum seu foram tão sujas, tão irregulares, tão maravilhosamente fora da caixa. Damo-vos só dois exemplos, para não vos maçar demasiado.

Em “The Healer”, Madlib faz um dos beats mais viciantes de sempre quase só com um baixo pulsando como um coração, um xilofone que vai descendo, bisonho, e um prato-de-choque solitário que rebenta, saboroso, ao quarto tempo.

Invejoso, Shafik Husayn providencia uma solução ainda mais bizarra para o final de “Me”: a voz de Erykah e um trompete cool jazz correm, alucinados, um atrás do outro, repetindo exactamente as mesmas notas, sempre com um tagarelar longínquo em pano de fundo.

Muitos louvam, e bem, o lado político do disco, uma espécie de What’s Going On para a geração hip-hop. Mas é a excentricidade da forma, e a classe da sua imperfeição, que o tornam tão revolucionário. O R&B saltando outra vez para o frémito do desconhecido…