O disco que inventa a soul sofisticada de autor dos dourados anos 70.

A Motown dominava a indústria do R&B mas a soul sulista da Stax era uma concorrência a ter em conta. Acontece que em Dezembro de 1967 Otis Redding morre num estúpido acidente de avião, deixando Memphis órfã do seu menino de ouro. Como se não bastasse, uns meses depois a Atlantic açambarca todo o catálogo da Stax. Em desespero, Al Bell manda as suas tropas gravar de uma só assentada… 27 LPs! Não seria em vão.

Um dos músicos que responde à chamada é Isaac Hayes, pouco conhecido do público mas uma peça fundamental na retaguarda da Stax (como músico de sessão e escrevendo alguns dos seus clássicos). O disco que gravaria, Hot Buttered Soul, vende um milhão de discos, funcionando como o balão de oxigénio que a Stax tanto precisava.

O curioso é que Hayes não faz quaisquer concessões comerciais neste álbum. Pelo contrário, foi um dos primeiros músicos de R&B a reivindicar a total autonomia criativa, subvertendo todas as regras do género. No lugar das habituais canções orelhudas de 3 minutos, Hayes distribui os 45 minutos da sua obra-prima por 4 longas epopeias! Nunca se tinha visto nada assim.

Não é na composição que o disco sobressai – 3 dos temas são versões – mas sim na reinterpretação, na ambiência, nos arranjos. As melodias originais são subvertidas, brincando com os tempos, despenteando-as. Os gritos rudes da southern soul são substituídos pelo seu barítono delicado, sensual e introspectivo (Barry White roubar-lhe-ia quase tudo). A crueza dos arranjos típicos da Stax dá agora lugar a uma orquestração densa e cinematográfica, ainda mais luxuriante do que a da própria Motown (sim, foi aqui que os Portishead foram buscar todo o seu mistério). À semelhança do que Sly Stone estava também a fazer em Stand!, Hayes funde o funk de James Brown com o rock psicadélico, trazendo pela primeira vez para o R&B a guitarra wah-wah, os pedais de distorção e as longas improvisações.

A dinâmica agora é quase tudo: a acumulação de tensão, os crescendos emocionais, as repetições hipnóticas onde o tempo se suspende, o extravasar final onde todos os instrumentos choram. Na epopeia final, “By the Time I Make to Phoenix”, o baixo repete a mesma nota durante mais de 8 minutos, criando uma tensão exasperante, enquanto Hayes reinventa em spoken word a história daquele coração traído. Quando finalmente a melodia começa, e a orquestração exuberante se espraia, sentimos um deleite de alívio.

Nunca a soul tinha sido tão ambiciosa e sofisticada, tão visionária e vanguardista, tão complexa e burguesa. As letras são inofensivas, a dimensão política está em outro lugar: na reivindicação de um espaço artístico sério para a música popular negra, que fosse muito para lá do mero entretenimento. Aberta esta porta, está oficialmente inaugurado o período mais rico da história do R&B: a soul requintada de autor dos dourados anos 70, quando Marvin Gaye, Stevie Wonder e Curtis Mayfield fazem as suas imortais obras-primas. Lembram-se da caricatura do Isaac Hayes no saudoso South Park? Chamava-se Chef…