Foi através do seu inesquecível violão e da sua voz poderosa que Dorival Caymmi cantou para o mundo a cultura e as tradições da Bahia, sua amada terra natal. Da culinária baiana à religião, das lendas e mistérios aos lugares paradisíacos da Bahia, passando por personagens do cotidiano baiano como a baiana do acarajé e o pescador, todos esses elementos representativos da Bahia serviram de fonte de inspiração para Dorival Caymmi construir a sua obra.
Dentro desse universo musical de Caymmi, a temática praieira se tornou uma marca muito forte dentro da obra do cantor baiano. Poucos artistas na música brasileira cantaram com tanta maestria o mar e com tanta verdade a vida praieira como Dorival Caymmi. O fato de ter nascido numa cidade litorânea como Salvador, ajudou Dorival a ter uma fonte rica de referências para ele compor canções falando da vida dos pescadores, de suas esposas, das lendas e da vida difícil de quem tira o seu sustento da pesca no mar.
Filho de um funcionário público e de uma dona de casa, Dorival Caymmi nasceu em Salvador, Bahia, em 30 de abril de 1914. Seu sobrenome Caymmi veio do bisavô paterno, um italiano que migrou para Salvador para trabalhar nos reparos técnicos no Elevador Lacerda, ainda na sua antiga versão, em meados da segunda metade do século XIX. O pai de Caymmi era músico amador e a mãe gostava de cantar.
Durante a adolescência Caymmi trabalhou na redação do jornal O Imparcial, de Salvador, depois trabalhou como vendedor de bebidas. Aos 19 anos, Dorival aprendeu a tocar violão com seu pai e com um tio. Em 1934, começou a carreira artística se apresentando na Rádio Clube da Bahia e, quatro anos depois, já estava deixando Salvador para tentar a sorte no Rio de Janeiro, então capital do Brasil e onde se concentravam as grandes emissoras de rádio, as gravadoras e os grandes dos artistas do país.
No Rio de Janeiro, Dorival Caymmi consegue um emprego na redação de O Jornal, do grupo Diários Associados e, no mesmo ano, torna-se atração fixa da Rádio Tupi. No mesmo ano, consegue um contrato com a gravadora Odeon. A fama começa a chegar para Caymmi em 1939, depois que Carmen Miranda (1909-1955) grava uma canção de sua autoria, “O Que É Que A Baiana Tem?”, incluída no filme Banana da Terra, do diretor Wallace Downey (1902-1978), e que se torna um enorme sucesso naquele ano.
Dorival Caymmi, em início de carreira, ao lado de Carmen Miranda e Assis Valente, na Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro. |
A carreira de Caymmi decola nos anos 1940 com uma sucessão de lançamentos de discos em 78 rotações por minuto, trazendo sambas inspirados na Bahia e canções praieiras que se tornaram grandes sucessos como “O Mar”, “É Doce Morrer No Mar”, “A vizinha do lado” e “Samba da Minha Terra”. No final dos anos 1940, Caymmi começa a se dedicar também ao samba-canção, causando uma certa estranheza à crítica, já que o cantor estava consolidado com seus sambas alegres e suas canções praieiras. O samba-canção “Marina” foi um grande sucesso em 1947, e mostrou que Caymmi também tinha habilidade para compor e cantar canções nesse gênero.
Entre 1949 e 1952, Caymmi não lança nenhum disco, apenas faz apresentações em boates, que se multiplicavam no Rio de Janeiro naquela época após o fim dos cassinos por decreto do governo federal. Era o declínio das orquestras, e ascensão dos quartetos ao estilo jazzístico. Caymmi no entanto, apresenta-se apenas com a sua voz e violão, o que acabaria influenciando a bossa nova que estava por vir.
Após tantos discos de 78 rotações lançados e com uma carreira consolidada, finalmente Dorival Caymmi lança em 1954 o seu primeiro LP (long playing), Canções Praieiras, aos 40 anos de idade. O LP era uma novidade no Brasil naquela primeira metade dos anos 1950, era o mais novo e avançado formato de mídia musical naquela época, por caber mais músicas e ter uma qualidade sonora superior aos discos de 78 rotações que traziam apenas duas músicas e uma qualidade de áudio inferior.
Lançado pela gravadora Odeon, Canções Praieiras foi lançado como LP de dez polegadas e com oito canções. E como sugere o título, é um álbum que reúne canções com temática praieira. O repertório do álbum é formado por canções compostas e gravadas por Caymmi nos anos 1940, algumas delas gravadas também por outros artistas. Porém, para o álbum Canções Praieiras, Caymmi as regravou e desta vez apenas com voz e violão. A única canção até então inédita era “O Bem do Mar”.
Embora seja um disco bastante simples, só à base de voz e violão, Dorival Caymmi conseguiu imprimir dramaticidade nas canções e criar toda uma sensação que leva o ouvinte a imaginar as cenas retratadas pelos versos como se estivesse vendo um filme.
O álbum começa ao som do violão e do assobio tranquilo de Caymmi que dá início à canção “Quem Vem Pra Beira do Mar”. A linha melódica da canção parece simular o movimento do “vai e vem” da água do mar na beira da praia.
A canção seguinte, “O Bem do Mar”, é sobre os dois amores da vida de um pescador, segundo Caymmi: a esposa e o mar. O bem de terra, como diz a letra é a esposa do pescador, a mulher, a companheira que o acompanha quando ele parte para o mar, e a mesma que o aguarda na beira da praia esperando-o voltar de mais um dia de pesca. O bem do mar é o lugar de trabalho do pescador, é de onde ele tira o sustento da família, e que em algumas situações, arrisca a própria vida para garantir esse sustento.
O mar e os pescadores foram algumas das grandes inspirações para o cancioneiros de Dorival Caymmi. |
As canções praieiras de Caymmi falam de vida, de amores, de pesca, mas também falam de morte e de tragédia. “O Mar”, que já havia sido gravada antes por Dorival em 1943, é uma canção bonita, mas ao mesmo tempo muito triste. Versa sobre o pescador Pedro, que costumava se lançar à noite ao mar com seu barco para pescar e só retornava no raiar do dia. Contudo, num certo dia, Pedro não voltou. Seu corpo foi encontrado numa praia distante do arraial onde morava, roído pelos peixes. A morte de Pedro não deixou apenas o arraial triste, mas também Rosinha de Chica, a mocinha que era apaixonada por ele.
“Pescaria” (também conhecida como “Canoeiro”) retrata o trabalho árduo e repetitivo dos pescadores. Dorival imprime um ritmo veloz no andamento da música e no seu canto para ressaltar o processo repetitivo e cansativo do trabalho dos pescadores. “É Doce Morrer No Mar” é outra canção antiga de Dorival, gravada por ele 1943, e que reaparece neste disco numa nova gravação. É outra canção triste e misteriosa, em que um marinheiro saiu no seu saveiro à noite, e na madrugada, a embarcação voltou sozinha, sem o seu dono. O marinheiro teria sido levado para as profundezas do mar por Iemanjá.
Desaparecimento e tristeza também marcam os versos de “A Jangada Voltou Só”, canção que foi gravada anteriormente por Caymmi em 1943, e regravada pelo artista para este álbum. “A Jangada Voltou Só” é sobre os pescadores Chico Ferreira e Bento, que partiram com sua jangada para pescar, mas misteriosamente, a jangada voltou sem os dois pescadores. O canto pausado e grave de Caymmi acentuam o tom melancólico e funesto dos versos.
Em “A Lenda do Abaeté” Caymmi canta os mistérios e lendas sobre a famosa lagoa de águas escuras cercada de areia branca e que povoam o imaginário do povo baiano. O álbum termina com “Saudade de Itapoã”, canção que apresenta em versos o poder mágico e sedutor da Praia de Itapoã, em Salvador, que na época em que foi gravada, ainda guardava toda a aura de um lugar paradisíaco.
Após a simplicidade de Canções Praieiras, Dorival Caymmi lançou em 1955 o seu segundo álbum, Sambas, um disco que já traz arranjos mais robustos, recheados de orquestrações e conjunto vocal. Mas é justamente a simplicidade e a elegância do violão de Caymmi em Canções Praieiras que irá direcionar e influenciar os futuros caminhos que a música brasileira iria trilhar.
Faixas
Todas de autoria de Dorival Caymmi
Lado 1
01 – “Quem Vem Pra Beira do Mar”
02 – “O Bem do Mar”
03 – “O Mar”
04 – “Pescaria (Canoeiro)”
Lado 2
05 – “É Doce Morrer no Mar”
06 – “A Jangada Voltou Só”
07 – “Lenda do Abaeté”
08 – “Saudade de Itapoã”
Sem comentários:
Enviar um comentário