O que você espera musicalmente de uma mulher preta? Independente da resposta, a direção percorrida por Taja Cheek em estúdio está longe de seguir prováveis padrões, estruturas ou gêneros historicamente atrelados à comunidade negra. Utilizando da identidade de L’Rain, a cantora, compositora, produtora e multi-instrumentista continuamente busca testar os limites da própria obra. São perversões estéticas e estilísticas que desafiam a interpretação do ouvinte, sempre transportado para dentro de um ambiente marcado pelas possibilidades. Sob a controle criativo da musicista há espaço para tudo, menos o óbvio.
Terceiro e mais recente trabalho de estúdio de Cheek, I Killed Your Dog (2023, Mexica Summer) funciona como uma boa representação desse resultado. Sequência ao material apresentado no também provocativo Fatigue (2021), o registro não apenas destaca a força criativa e domínio da artista, como leva o ouvinte para direções totalmente inimagináveis. São ecos de música psicodélica, jazz, soul e pop, porém, partindo de um direcionamento torto. Mesmo os diferentes interlúdios, tão diminutos, concentram décadas de referências em um intervalo de poucos segundos, evidenciando a riqueza de ideias e atenção de L’Rain aos detalhes.
Assim como o registro que o antecede, I Killed Your Dog trata de cada faixa como uma peça isolado. São pequenos bolsões que possibilitam à artista a chance de se desafiar criativamente. Exemplo disso pode ser percebido na sequência formada por Pet Rock e I Hate My Best Friends. Enquanto a primeira canção vai de encontro à mesma psicodelia tameimpalesca de Kevin Parker, com a composição seguinte, L’Rain perverte totalmente esse resultado, mergulhando em um pop fantasmagórico. É como um espaço onde tudo e nada pode acontecer. Uma delirante combinação de elementos, ritmos e vozes que muda direção a todo instante.
Embora diverso, I Killed Your Dog está longe de parecer um exercício criativo marcado pela aleatoriedade. Como indicado no próprio título do trabalho, em português, “eu matei seu cachorro”, L’Rain se aventura na apresentação de faixas marcadas por imagens fortes e impactantes, sempre resolvidas em um intervalo de poucos minutos. São interpretações viscerais sobre o amor, relações conflituosas e momentos de maior instabilidade emocional que orientam não apenas a formação dos arranjos, como a construção dos versos. “Talvez um dia / Eu vou tirar a poeira, esquecer que você veio / Chafurdar na solidão até não sentir nada“, canta na já conhecida r(EMOTE), música que sintetiza parte desse lirismo atormentado que rege o disco.
Em geral, são composições que começam pequenas, por vezes excessivamente discretas, mas que se transformam por completo, levando o trabalho para novas direções. Uma das canções mais potentes do disco, Uncertainty Principle sintetiza de forma bastante expressiva esse resultado. Enquanto os versos tratam sobre fins e recomeços (“Você está convencido de que no escuro não haverá nada / Mas para mim, um pouco de nada tem alguma coisa“), camadas de guitarras surgem e desaparecem a todo instante, bagunçando a experiência do ouvinte. Essa mesma riqueza de elementos pode ser percebida em outros momentos ao longo da obra, como no neo-soul catártico de New Year’s UnResolution e nas distorções de Knead Bee, destacando as inúmeras possibilidades e caminhos percorridos pela musicista em estúdio.
Nesse espaço onde tudo se projeta de maneira grandiosa e estruturalmente imprevisível, composições que fogem à regra acabam passando quase despercebidas. É o caso de Clumsy, música que ganha forma e cresce de maneira contida, soando mais como um respiro do que necessariamente uma peça importante do material. O mesmo pode ser percebido em Our Funeral, faixa que custa a capturar a atenção do ouvinte. A questão é que, mesmo nos momentos menos expressivos do trabalho, Cheek nunca baixa o nível da própria criação. Do uso instrumental das vozes ao refinamento dos arranjos, evidente é o esforço de L’Rain em fazer de cada mínimo fragmento de I Killed Your Dog um exercício criativo de enorme valor artístico.
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