Ao terceiro disco, Estraca revela-se um dos mais talentosos MCs da sua geração. O bairro da Cruz Vermelha está prestes a ser demolido mas a sua poesia rude de rua essa já ninguém a derruba.
Há uma movida de hip-hop nos bairros periféricos da Grande Lisboa, invisível aos olhos do mainstream mas com uma surpreendente vitalidade subterrânea. O nome Estraca nada dirá à maioria dos nossos leitores mas se formos procurar o rasto no Youtube deste rapper – nascido na Musgueira e criado no bairro da Cruz Vermelha – encontraremos temas com quase 2 milhões de visualizações. Foi a internet que permitiu que estas comunidades marginalizadas criassem circuitos paralelos de legitimação.
Estraca é uma espécie de Kendrick Lamar tuga, o miúdo bom que cresce num bairro difícil, e que percebe desde muito cedo que ou se entrega de corpo e alma à sua grande paixão – o hip-hop – ou é apanhado, como tantos outros, nas armadilhas da clandestinidade. Para Estraca, o rap nunca foi uma escolha mas sim a mais absoluta das necessidades, daí o seu foco quase obsessivo no ofício das rimas. É tudo ou nada, não há metade.
Em coerência, recusou o caminho mais fácil, o do gangsta rap: gajas boas, uzzis e correntes de ouro ajudá-lo-iam, é certo, a vender mais discos mas a sua cena sempre foi outra, a do hip-hop interventivo. Discípulo de Chullage e Valete na rima activista, Estraca professa, porém, uma indignação menos ideológica do que a dos seus mestres, trocando as referências a Guevara ou Malcolm X pelo seu próprio exemplo de vida inspirador. Afinal de contas, foi assim que tudo começou no Bronx: o hip-hop como cultura de rua alternativa ao salve-se quem puder.
Com apenas 22 anos, Estraca dá agora vida ao seu terceiro álbum, de longe o mais profissional e maturo da sua discografia.
Apesar do seu conteúdo de denúncia social, a primeira parte de Dar Vida é mais macia, com melodias bonitas a adoçar o refrão (os convidados Murta, Selma Uamusse, Fabio Brazza e Matay emprestam para o efeito as suas vozes de algodão). Ficámos agradavelmente surpreendidos com esta sua inédita sensibilidade pop, um sinal saudável de versatilidade criativa.
Confessamos, contudo, a nossa preferência pela segunda parte do disco, mais agressiva e claustrofóbica, captando a tensão latente dos bairros difíceis que tão bem conhece. É nestes temas que Estraca melhor revela as suas qualidades de MC, disparando rápidas rimas internas com o seu flow ágil e sincopado, um dos mais escorreitos do rap português.
Para um artista que sempre preferiu o boom bap da velha guarda não deixa de ser irónico que uma das malhas mais bem conseguidas do disco seja o trap sombrio de “Tu Sabes” (props para o veterano Kosmo Da Gun). Sabemos bem o quanto Estraca é avesso às modas do momento, especialmente quando associadas à misoginia e ao novo-riquismo do costume, mas o trap enquanto estética nada tem de mal, antes pelo contrário, é um som fresco que sabe a século XXI, podes continuar, amigo, agradecemos.
Se aos 22 anos Estraca já é um dos nossos rappers mais talentosos, imaginem o seu tamanho daqui a uns aninhos. O céu do Lumiar é o limite…
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