O sentimento transbordante da soul numa roupagem contemporânea. E um enorme escritor de canções.
Uma arte só feita de futuro é arrogante: ninguém inventa a roda, tudo resulta de um caminho. Uma arte só feita de passado é preguiçosa: não tem vitalidade, é um mausoléu. O R&B de Channel Orange evita ambos os vícios, conciliando ousadia e tradição. A sua produção polida e exacta é moderna, feita de electrónicas chuvosas, ecos misteriosos e batidas de néon. Ao mesmo tempo, Frank faz questão de citar a soul dos anos 70, a década de ouro da música negra americana. A progressão de acordes de Sweet Life, e o seu piano eléctrico quente, são puro Stevie Wonder. Quando Sierra Leone chama em spoken word, e repete o mesmo verso a cantar, é Marvin Gaye que é convocado. O bonito falsete de Ocean tem também ilustres antepassados, de Curtis Mayfield a D’Angelo, passando por Prince.
E, contudo, o rótulo de R&B é redutor. Existe o groove, é certo, e o sentimento transbordante da soul, mas o que há sobretudo é um grande escritor de canções, um melodista que sabe driblar palavras, jackpot. Sempre com a cidade de Los Angeles em pano de fundo, Ocean partilha connosco histórias de pessoas perdidas: putos ricos e vazios sem nada a perder, junkies afundando-se no lodo do crack, homens desesperadamente sós no hotel dos corações partidos. “Bad Religion” é a curta-metragem mais comovente: um homem destroçado a entrar num táxi, sem querer ir a lado nenhum, pedindo apenas para deixar o taxímetro correr, abrindo o peito ferido. É esse o tom dominante do disco: melancólico e chuvoso, noctívago e desesperado.
Erikha Badu pode ser mais ousada no experimentalismo. Anderson .Paak. pode ter mais grão e groove na voz. Mas Ocean transcende a fronteira do próprio R&B, entrando na liga dos grandes cantautores. Um dos maiores da sua geração.
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