A eterna voz dos Pavement atira-se finalmente ao álbum acústico, conseguindo um trabalho sereno, bonito e onde abraça influências até aqui não detectadas
Os últimos anos têm sido abençoados para Stephen Malkmus, com um fluxo de actividade e criatividade que o coloca perto do topo de forma. Senão vejamos: em 2018, com os Jicks, editou o fabuloso Sparkle Hard, talvez o melhor álbum da sua carreira pós-Pavement e que ficou em quarto lugar na nossa lista de melhores discos desse ano; em 2019, atirou-se a Groove Denied, registo a solo onde brincou às electrónicas; e em 2020 tem agendados concertos com os Pavement nos festivais Primavera de Barcelona e do Porto. A juntar a isto, este foi também o ano de Traditional Techniques, o “disco acústico” que tem insinuado há algum tempo, e que agora chega finalmente às lojas.
Malkmus, como bom filho dos anos 90, deve a sua vida à guitarra eléctrica. Tirando os discos dos Silver Jews, do seu amigo David Berman, em que participou – e numa ou outra coisa a solo, a guitarra acústica sempre foi, para si, mais uma coisa para estar lá escondida na mistura e raramente foi fio condutor e estruturante dos temas. Estava na hora.
Que Malkmus é capaz de fazer uma melodia bonita – e que isso poderia perfeitamente funcionar no registo acústico – não é novidade para ninguém. A novidade é que ele não se limitou a manter o mesmo modo de funcionamento, apenas em formato unplugged. Em Traditional Techniques, gravado com vários músicos de projetos diferentes, o nosso slacker preferido não foi pelo caminho do mais do mesmo, sem electricidade. Em vários temas, como logo na abertura com “ACC Kirtan”, estão evidente influências de ritmos e temas orientais, cores e matizes que nunca lhe tínhamos ouvido.
Essa é uma das forças deste disco, a forma como a voz de Malkmus está ao centro do tudo, chamando-nos para si como sempre, enquanto lá atrás há toda uma série de coisas a acontecer: flautas (como na lindíssima “What Kind of Person”), cítara, bandolim, até tablas indianas. Já “Xian Man” explora tonalidades também indianas mas num improvável cruzamento com a country e uma guitarra eléctrica (sim!) possuída e que faz ali todo o sentido. “The Greatest Own in Legal History” está novamente em território country, sendo uma das músicas mais próximas do legado Malkmus, adornada por uma adorável guitarra slide, lenta como um fim de tarde no Texas.
“Shadowbanned” é um cruzamento entre música oriental e country alternativo, com toques deliciosos de cítara num ambiente marcado pelo psicadelismo. Em “Brainwashed”, adornado com um esparso e delicado piano eléctrico, temos a irresistível preguiça de Malkmus, que nos dá as palavras como se estivesse, despenteado, acabado de despertar, ainda no sofá. Em “Amberjack”, a surpresa é a forma comprometida e intensa como ele se entrega ao tema, como se pela primeira vez deixasse cair a máscara de eterno adolescente slacker para mostrar o homem que por lá vive, depois dos 50 anos de idade.
Traditional Techniques é, assim, um disco muito mais surpreendente do que se poderia esperar, debaixo de uma capa aparentemente simples. Stephen Malkmus não é exactamente conhecido por se aventurar muito para além das suas paisagens conhecidas e que tanto amamos. Aquilo que os últimos dois discos nos mostram é que há por ali mais, muito mais, do que imaginávamos, tanto tempo depois. Este é um álbum que nos remete para uma cabana isolada, numa primavera ainda insegura ou num início de outono maduro. É um disco sereno, muito bonito, e que nos vai conquistando, com segurança, pouco a pouco.
E é, arriscamos, uma compra obrigatória para os fãs deste talentoso senhor, com um espaço muito próprio e digno dentro da sua extensa discografia.
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