Arthur Russell era um precursor, por outro, também era o rapaz da cidade pequena procurando ajustar o adulto na cidade grande.
Iowa Dream é um campo lexical dessa fase de transição, onde encontramos a inocência que lhe confere uma bolha de intimidade, ao mesmo tempo que reconfigura a linguagem do pop em algo com enorme profundidade.
Não é fácil classificar a música de Arthur Russell. Mas, verdade seja dita, quem é que o quererá fazer? A obra deste norte americano constrói-se em camadas sobre camadas de géneros musicais e é uma cápsula do tempo contendo o cenário fervilhante em que Nova Iorque se encontrava nos anos 70/80 com os intelectuais da época que viam naquele quadrado de espaço e de tempo um lugar para experimentar um pouco de tudo. E com Arthur Russell não foi diferente. Absorvendo as múltiplas possibilidades e engenhos que a cidade oferecia, o músico rompeu as ligações à sua formação clássica (sobre a qual já sentia algumas divergências) e foi construindo um percurso enquanto compositor, produtor, cantor e violoncelista (aliás, algumas das imagens mais conhecidas de Russell são dele acompanhado do seu violoncelo). Além de tudo isso, eram constantes as colaborações com diversos artistas do mundo ungerground novaiorquino. Da electrónica à disco e ao pop, das spoken words às raízes de música clássica, ele conseguia coser todos estes elementos e produzir um som singular e vanguardista. Era, sem dúvida, um músico prolífico em todos os segmentos, mesmo tendo lançado apenas um álbum (World of Echo) gravado em estúdio, sem nenhuma das colaborações habituais.
Depois da sua morte (como muitos da sua geração, Russell faria parte da terrível lista de vítimas de SIDA), foi encontrado um arquivo que o norte-americano deixara de gravações de experimentações e composições, algumas até incompletas, e a partir das quais Steve Knutson – responsável pelo espólio musical – e Tom Lee, companheiro de longa data do artista, editariam alguns álbuns póstumos. Iowa Dream é a compilação mais recente, a dar contas da tal proliferação do músico e cujo título vem recuperar um pouco as suas origens. E por origens, não me quero cingir apenas às geográficas, não. Se por um lado, Arthur Russell era um precursor, por outro, era também o rapaz da cidade pequena procurando ajustar o adulto na cidade grande. Essa mesma inocência que o acompanhava era o que lhe permitia conferir uma bolha de grande intimidade e doçura às suas composições e reconfigurar a linguagem do pop em algo com enorme profundidade.
É logo com a primeira faixa que deixamos prender a nossa atenção, quando escutamos, entre a sonoridade algo infantil do piano e vibrafone, as primeiras palavras “I’m a Wonder Boy / I can’t do nothing” ecoando a consternação de Russell que se via, com repetição, limitado por terceiros para compor e produzir a sua música livremente. “Iowa Dream”, por sua vez, é uma alegoria sobre uma vida no passado, um alegre hino aos dias em Oskaloosa, a sua cidade natal, em contraste com a frenética “Barefoot in New York”, um retrato visual e sonoro do turbilhão dos ritmos da cidade. Mas o caminho também se faz com amor, devastadoras palavras mas cheias de amor, como quando regressamos a “Words of Love” e repetimos “But if I could convince you that these are words of love / The heardache would instantly remain / But the pain would be gone”. E isto é tudo a que podemos aspirar.
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