Após o grande sucesso comercial do álbum Who's Next (1971), a banda The Who já estava pensando no próximo álbum de estúdio. Pete Townshend, guitarrista e principal letrista da banda, já tinha em mente o próximo álbum do The Who seria mais uma ópera-rock. O quarteto inglês já vinha de uma experiência muito bem sucedida com Tommy, de 1969, uma ópera-rock lançada num álbum duplo e que elevou o The Who a condição de gigante de rock.
Dois anos depois, bastante inspirado e motivado, Pete Townshend chegou planejar uma ópera-rock bastante ousada, uma ficção-científica chamada Lifehouse que consistia num projeto multimídia ambicioso que envolveria um álbum duplo e um filme. Porém, embora a banda tivesse feito algumas gravações prévias, o projeto fracassou após um desentendimento entre Pete Townshend e o produtor e empresário do The Who, Kit Lambert. Parte desse material de Lifehouse foi selecionado, rearranjado e foi utilizado para montar o repertório do álbum Who's Next, trabalho produzido por Gly Johns.
Para o trabalho sucessor de Who's Next, Pete Townshend pensou em mais uma incursão do The Who na ópera-rock, e com um tema bem ousado. O enredo da história se desenrola nas cidades de Londres e Brighton, na Inglaterra, em meados dos anos 1960, e tem como pano de fundo a rivalidade entre a gangue dos mods contra a dos rockers. Os mods (corruptela de "modernos") eram jovens da classe operária inglesa que gostavam de se vestir bem, andavam de lambreta e tinham o blues e o rhythm and blues americanos como o tipode música preferida. Já os rockers, jovens da classe média inglesa, são inspirados no visual dos roqueiros americanos dos anos 1950: vestem jaquetas e calças de couro, andam de motocicleta e são violentos.
O protagonista dessa história é Jimmy Cooper, um jovem mod que está em busca de uma identidade, de pertencimento. Ele trava conflitos pessoais, desentendimentos com seus pais por causa do seu vício em anfetaminas e a instabilidades nos empregos que consegue, passando pela baixa autoestima. Jimmy possui quatro personalidades distintas, cada uma delas, curiosamente, faz uma alusão a cada membro do The Who: "o agressivo" (Roger Daltrey), "o romântico" (John Entwistle), "o lunático" (Keith Moon) e "o caótico" (Townshend). E essa quádrupla personalidade de Jimmy está representada na lambreta que ele possui: em cada lado do veículo há quatro retrovisores.
Por causa das quatro personalidades de Jimmy Cooper, o álbum foi intitulado Quadrophenia. O título é um trocadilho das quatro personalidades de Jimmy com a palavra esquizofrenia. No álbum, cada perfil de personalidade ganhou uma canção-tema cantada por um integrante representando o perfil específico.
The Who, da esquerda para a direita: Pete Townshend, Keith Moon, Roger Daltrey e John Entwistle. |
As gravações do álbum ocorreram entre maio e junho de 1972, e entre maio e setembro de 1973, no Ramport Studios, na época, o recém construído estúdio do The Who. Como o estúdio da banda ainda estava incompleto, o The Who contratou o estúdio móvel de Ronnie Lane, baixista da banda The Faces para complementar as gravações do álbum. Assim como ocorreu em Who's Next, Peter Townshend tocou não apenas a sua guitarra, mas também fez uso de sintetizadores, além de ter feito gravações em locais públicos para colher sons ambientes como som de mar, de chuva, de vento, ruído de trânsito, de sirenes e de passos de pedestres. À frente da produção do álbum esteveram o The Who, Kit Lambert (provavelmente antes de ser demitido pela banda) e Peter Kameron. Gly Johns, produtor que já havia trabalhado com os Beatles e alguns discos anteriores do Who, foi responsável pela engenharia de som do álbum.
Quadrophenia é um álbum composto por 17 faixas, todas elas escritas por Pete Townshend e distribuídas em dois discos. O disco 1 de Quadrophenia começa com "I Am The Sea", uma vinheta que traz sons de mar, vento, chuva e trechos de canções antigas do The Who. Em seguida vem a faixa "The Real Me", uma canção em que o jovem Jimmy Cooper, diante de seu analista, expressa as suas dúvidas sobre a sua própria identidade. Musicalmente, "The Real Me" possui uma linha de baixo marcante, virtuosa, uma bateria excessivamente cheia de viradas (uma marca registrada do estilo de Keith Moon), camadas de sintetizadores e o vocal berrado de Roger Daltrey.
A faixa-título é instrumental, começa com um rufar de de caixas da bateria de Moon. Mais adiantes, o som do piano contrasta com os solos de guitarra de Pete Townshend. E é o mesmo Townshend que à frente dos sintetizadores, cria todo um clima sonoro "etéreo", dando à faixa todo um aspecto de rock progressivo.
Em "Cut My Hair", Townshend e Daltrey dividemos os vocais, sendo que o primeiro canta as estrofes e o segundo canta o refrão. A música começa com um som de chuva sucedido por riffs de guitarra, dando início à faixa, que alterna ritmos calmos com acelerados. A letra trata sobre conflito de gerações em que Jimmy assume ser um mod e entra em choque com seu pai que o critica, que não aceita ver o filho envolvido em briga de gangues.
O lado 1 do disco 1 termina com "The Punk and The Godfather". A expressão "punk" nesta canção não se refere àquela figura urbana de jaqueta de couro, roupa rasgada, cabelo espetado e grampos no corpo, até porque, o punk que conhecemos não existia em 1973. Nesta canção, o punk é um arruaceiro, um desordeiro, um desocupado. "The Punk and The Godfather" tem uma base instrumental forte e simples, e traz Roger Daltrey no vocal principal. A letra trata sobre um diálogo de Jimmy com seu pai, onde o jovem revela que sua vida é tediosa, vazia e sem objetivos. Seu pai, por sua vez, conforta o filho revelando que quando era jovem, também havia passado por isso, mas conseguiu superar essa fase.
"I'm One" (At Least)" é uma canção com inclinação country que abre o lado2 do disco 1 e tem Pete Townshend no vocal principal. Na letra da faixa, Jimmy se diz ser alguém relevante por pertencer à gangue dos mods. Por sofrer baixa autoestima, por se achar um fracassado, Jimmy encontra na gangue dos mods acolhimento, se sente pertencido e a autostima elevada.
"The Dirty Jobs" trata sobre as humilhações sofridas por Jimmy nos empregos mal remunerados em que trabalhou. Ainda assim, apesar das dificuldades, o jovem guarda a esperança de que as coisas irão mudar para melhor na sua vida: "Minha vida está acabando/ Mas as coisas estão mudando / Eu não vou sentar e chorar novamente".
"Helpless Dancer" é o primeiro tema que aparece no álbum representando um perfil de personalidade, e é referente a Roger Daltrey. A base instrumental é tensa e traz um vocal nervoso e revoltado de um Daltrey que parece "vomitar" através dos versos da canção, todo um inconformismo acumulado com o que ele vê numa sociedade preconceituosa e gananciosa. A letra ainda faz referência aos ataques a homossexuais e negros.
A próxima faixa é "Is It In My Head?", um rock balada de arranjos bem elaborados e um apelo melódico muito bonito, seja através das hamonizações vocais ou das passagens de piano. Os versos tratam da esquizofrenia de Jimmy Cooper, das vozes que ele ouve dentro da sua cabeça.
Fechando o disco 1, a canção "I've Had Enough", onde Roger Daltrey e o guitarrista Pete Townshend cantam juntos sobre as perdas e ganhos no decorrer da vida de um indivíduo. A música começa com a bateria forte a celerada de Keith Moon, seguida pelas guitarras, baixo, violões e piano que formam uma base instrumental bem consistente. Ao longo da faixa, há um alternância do ritmo da música , revezando momentos mais calmos e momentos mais rápidos e intensos.
The Who ao vivo, no Kings Hall, no Belle Vue, em Manchester, Inglaterra, em novembro de 1973. Apresentação fez parte da turnê promocional do álbum Quadrophenia. |
O disco 2 começa com "5:15", música que de longe é a mais famosa do álbum Quadrophenia. Roger Daltrey é o vocal principal da canção, enquanto que Pete Townshend canta os versos da introdução da música, faz o acompanhamento como apoio vocal e canta no final da canção. "5:15" é sobre a viagem de Jimmy de trem para Brighton. O título da canção refere-se ao horário de partida do trem que Jimmy pegou para ir a Brighton. Durante a viagem, o jovem mod relembra as suas experiências sexuais, algumas delas infelizes.
Sons de mar e de pássaros abrem a faixa "Sea And Sand", uma canção cujo tema seria uma continuação do tema da faixa anterior. Ao chegar a Brighton, Jimmy fica diante da beira do mar refletindo a sua vida: os conflitos com seus pais e a desilusão amorosa. A base instrumental possui uma alternância ritmica, tendendo para a sonoridade acústica da folk music e para o peso do hard rock.
"Drowned" foi escrita por Pete Townshend no começo dos anos 1970 como um tributo ao guru indiano Meher Baba (1894-1969), mas só gravada pelo The Who em 1973 para o álbum Quadrophenia. E ao ser incluída no álbum, a canção ganhou uma nova ressignificação ao ser associada a Jimmy Cooper, que diante do mar, em Brighton, ele pensa em se afogar para livrar-se das suas decepções e angústias. A faixa é um rock vigoroso, com um baixo pulsante e uma bateria carregada de viradas. Destaque para o piano tocado por Chris Stainton, um requisitado músico de estúdio que já havia gravado em álbuns de artistas como a banda inglesa Spooky Tooth e os cantores Joe Cocker (1944-2014) e Leon Russell (1942-2016).
A próxima faixa, "Bell Boy", começa com um rufar da bateria de Keith Moon, como se estivesse invadindo violentamente um recinto. E por falar em Keith Moon, "Bell Boy", é o tema do baterista, representando "o lunático", embora boa parte da música seja cantada por Roger Daltrey. No entanto, Moon participa vocalmente da canção meio que recitando os versos com uma voz cômica, parecendo de personagem de desenhos animados. A letra da música é sobre o encontro de Jimmy com alguém que ele tanto admirava e lhe servia de exemplo, Ace Face, outrora líder dos mods. Porém, o encontro foi decepcionante para Jimmy porque Ace Face deixou de ser um mod e agora trabalha como um modesto carregador de malas de um hotel ("bell boy"), em Brighton, para se sustentar. A ironia do destino é que Ace Face trabalha no mesmo que ele, liderando os mods, atacou e destruiu, em 1963.
Com pouco mais de oito minutos, "Doctor Jimmy" é a faixa mais longa do álbum Quadrophenia. A faixa começa com sons de chuva e de sirene para logo depois darem lugar à bateria, ao baixo e a um riff repetitivo de sintetizador que irá pontuar boa parte da música. Roger Daltrey canta o drama de Jimmy que chega ao fundo poço, completamente dominado pelo vício no álcool e nas drogas, o que potencializa a multiplicidade da personalidade de Jimmy. E por causa disso, sobre o poder nocivo da bebida e das drogas na personalidade de Jimmy, um determinado trecho da faixa faz uma sutil alusão a Doutor Jekyll e Mr. Hyde, personagens da obra literária O Médico e O Mostro, de Robert Louis Stevenson (1850-1894): "Doutor Jimmy e Senhor Jim / Quando estou dopado você não o percebe / Ele só sai quando eu bebo meu gim / livro "Doctor Jekyll and Mr. Hyde". Em "Doctor Jimmy", está incluído o tema de John Entwistle, “Is It Me?”, o terceiro tema de um integrante do The Who e que diz "Sou eu por um momento? / As estrelas estão caindo / O calor está aumentando / O passado está chamando".
O ator Phil Daniels como Jimmy Cooper, no filme Quadrophenia, do diretor Franc Roddam, em 1979. Filme foi baseado no filme Quadrophenia. |
"The Rock" é a segunda faixa instrumental do álbum. A faixa traz uma combinação instrumental dos quatro temas dos membros da banda, como a sequência de acordes de "Bell Boy", a linha melódica de "Helpless Dancer", um solo de guitarra reproduzindo o refrão de "Is It Me", e na reta final, uma versão de "Love Reign O'er Me" numa mistura de blues e pop rock.
E quem fecha o álbum é a já citada "Love Reign O'er Me", em sua versão original e apoteótica. Roger Daltrey canta de uma magistral, pondo para fora toda uma carga emocional como intérprete, mostrando o porquê de figurar na galeria das maiores vozes do rock emtodo os tempos. "Love Reign O'er Me" o tema de Pete Towshend, foi composta por ele mesmo em 1972, inspirando-se no guru Meher Baba. Os versos tratam da redenção de Jimmy Cooper, que passava por uma crise pessoal, pensando inclusive em suicídio, mas que encontra a paz espiritual após uma chuva torrencial que demove o jovem mod de pôr fim à p´ropria vida. Para o guru Meher Baba, "a chuva é uma bênção de Deus, e o trovão a voz de Deus".
Quadrophenia alcançou o 2° lugar da parada de álbuns do Reino Unido, também na mesma posição na Billboard 200, nos Estados Unidos e na parada de álbuns do Canadá. Cerca de 1 milhão de cópias vendidas de Quadrophenia nos Estados Unidos, por volta de 100 mil cópias vendidas no Reino Unido, França e Canadá.
O lançamento de Quadrophenia foi seguido por uma turnê promocional do álbum, que começou pelo Reino Unido, entre outubro e novembro de 1973. Na turnê americana, durante um show do The Who em San Francisco, o baterista Keith Moon sofreu um desmaio em pleno palco. Um fã da banda, Scott Halpin, assumiu a bateria e ajudou o The Who a terminar a suea apresentação.
Mas um novo incidente ocorreu. Em junho de 1974, por causa de problemas com as fitas pré-gravadas durante os shows, a turnê de Quadrophenia foi simplesmente cancelada precocemente, cerca de pouco mais de seis meses depois de ter começado.
Em 1979, Quadrophenia virou filme, dirigido por Franc Roddam, com o ator Phil Daniels no papel de Jimmy Cooper e o então vocalista do The Police, Sting, como Ace Face. Diferente da versão cinematográfica de Tommy, a primeira ópera-rock do The Who, e que teve perfilmais de filme musical.
Durante uma entrevista de Pete Townshend, o guitarrista do The Who afirmou que Quadrophenia foi o últim o último grande álbum do The Who.
Faixas - Todas as canções compostas por Pete Townshend.
Disco Um
Lado A
1."I Am The Sea"
2."The Real Me"
3."Quadrophenia" [Instrumental]
4."Cut My Hair"
5."The Punk and the Godfather"
Lado B
1."I'm One (At least)"
2."The Dirty Jobs"
3."Helpless Dancer (Roger's theme)"
4."Is It In My Head?"
5."I've Had Enough"
Disco Dois
Lado C
1."5:15"
2."Sea and Sand"
3."Drowned"
4."Bell Boy"
Lado D
1."Doctor Jimmy"
2."The Rock" [Instrumental]
3."Love, Reign O'er Me"
Ficha técnica
The Who:
John Entwistle: Baixo, Trompa, Vocais de apoio
Roger Daltrey: Vocais
Keith Moon: Bateria, Percussão, Vocais em "Bell Boy"
Pete Townshend: Guitarra, Violão, Teclados, Banjo, Violoncelo, Vocais e Efeitos Sonoros
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