domingo, 17 de dezembro de 2023

Daft Punk – Discovery (2001)

 

É um disco soalheiro que nos deixa bem-dispostos, Beach Boys para a geração pós-ecstasy.

Já sabíamos o quanto a dupla francesa valia. O primeiro álbum, Homework, é house de primeira água, french touch no seu melhor. Mas nada nos tinha preparado para a metamorfose de DiscoveryHomework era música de dança pura, maquinal e pesada, desenhada para o habitat esconso de uma pista nocturna. Discovery sai do nicho da dance music e entra, sem pedir licença, pela pop adentro. O groove electrónico permanece – “One More Time” rebenta qualquer pista – mas as suas melodias viciantes podem agora ser apreciadas em qualquer lugar: no carro, na praia, na languidez do sofá.

É um disco soalheiro que nos deixa bem-dispostos, Beach Boys para a geração pós-ecstasy. A sua alegria é de plástico, mais solário do que sol, mais relva sintética do que areia, o espírito dos anos 80 regressando da tumba, feliz. Daí a a guitarra-sintetizador em “Digital Love” e a voz de vocoder que atravessa o disco, visões ingénuas de um futuro que não veio. Daí também o electro da velha guarda em “Short Circuit”, Afrika Bambaataa jogando à bisca com Grand Master Flash (que bom que é mascar os seus baixos pastilha elástica e fazer balões com eles). Por fim, o euro-disco à Giorgio Moroder em “Veridis Quo”, mais os seus sintetizadores espaciais, ontem ousados e modernos, hoje deliciosamente vintage.

O seu revivalismo não é teórico, atenção, é mesmo saudades da infância, no fundo o tema do disco. Quando temos 10 anos, não há ainda o grilo falante da coolness, queremos lá saber. Ora Discovery também não quer e ainda bem. O soft rock impotente dos 10cc estava soterrado há décadas? Não faz mal, apareçam em “Nightvision” e, já agora, tragam também os defuntos Supertramp para “Digital Love”. O hard rock histérico dos Van Halen estava proscrito em todos os manuais de bom senso e bom gosto? Não há espiga, a sua guitarra exibicionista é agora bem-vinda em “Aerodynamics”. A simples menção das palavras disco sound provocava tremores e suores frios? Não há problema; faça o obséquio de entrar em “Voyager”, senhor baixo borbulhante dos Chic.

Quem ler estas palavras, e não conhecer as canções, julgará que Discovery é uma salgalhada de mau gosto sem qualquer coesão estética. Nada podia estar mais longe da verdade. Por menos recomendáveis que sejam as referências trazidas, o resultado final é sempre elegante e coerente: um caleidoscópio de mil cores a explodir nos nossos centros de prazer. Veja-se o caso do auto-tune, azeiteiro no clássico da Cher, sempre charmoso nos Daft Punk. Não se diabolize o bicho, é uma ferramenta como outra qualquer, tudo depende do que se faz com ela.

A nostalgia de Discovery é um acto criativo, concluímos. O passado aqui não é ponto de chegada, é casa de partida. As batidas electrónicas “quatro no chão” (tum-tum-tum-tum) não deixam dúvidas quanto à sua contemporaneidade. Os Led Zeppelin pegaram no blues e transformaram-no em algo radicalmente novo, os Daft Punk recorreram à mesma alquimia, transmutando o velho em novo. Quando nostalgia e futurismo são misturados na dose certa, aparece uma das obras maiores do século XXI. É pop? É arte? Talvez pop art. Andy Warhol para os ouvidos, Lichtenstein para as ancas. Superficialidade, sim, mas com requinte…



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