O primeiro disco surgiu do nada e despertou analogias a Serge Gainsbourg, este segundo, um ano depois, expande esse universo.
David Besteiro deixou, em 2018, de ser apenas uma das partes do Conjunto Corona e passou a autor a solo com “O Último Tango em Mafamude”, misturando a vida de bairro com o kitsch português da meia branca, a camisa larga aberta até ao peito e o casaco (blazer creme com quadrados verdes) a cheirar levemente a naftalina.
Em “Miramar Confidencial” assume-se mais neste universo. Aqui é Adriano, figura-tipo do português pato-bravo nos anos 90, inspirado em factos reais que pouco importam ao disco, porque a ficção pode ser muito mais interessante que a realidade. David Bruno assume o papel de construtor civil na zona litoral de Gaia e como este personagem recorda os bons anos 90, em que a construção se mistura com a estética de filmes de Steven Seagal.
Mais uma vez entre o pimba e o bom gosto, David Bruno nunca deixa resvalar a ironia e genuíno apreço por esse mundo para o foleiro.
O disco abre com um instrumental onde se destaca um recorrente sample de uma águia retirada a um filme de acção dos anos 90. Mais para a frente vamos voltar a encontrar este som no desenrolar da história. Também como no álbum anterior, tudo isto pode ser acompanhado pelos vídeos no youtube, numa espécie de experiência aumentada onde as referências à região, com bares, locais e até a partes da década, como os Jogos Sem Fronteiras, são quadros do mundo destes personagens.
“Com Contribuinte” é uma ode aos tempos em que o dinheiro abunda e este Adriano aproveita para meter jantares nas contas da empresa. O disco é entrecortado por pausas, onde várias figuras se queixam que o personagem é caloteiro. O tom é amigável de início, com Samuel Úria, e vai piorando ao longo da história/disco, nas outras pausas onde entram Fernando Alvim e Este Senhor (Bondage/Carlos Afonso) que já ameaça com advogados “Espírito Santo style”. O personagem é um burlão que quer uma vida melhor, com lagostim e vista para o mar, como se percebe em “Interveniente Acidental”. Esta faixa com participação de Mike El Nite é quando Adriano vai a tribunal como consequência de tentar “fazer pela vida” por si e pelo seu amor que não compreende o seu estilo de vida e que ele acaba eventualmente por desistir, a favor do trabalho e do dinheiro.
O disco está repleto de momentos cómicos como em “Aparthotel Céu Azul” onde se ouve “Toda a noite Safari cola e Curassã / trinco-te o miolo deixo-te a codeã”. A história é vaga o suficiente para preencher com a nossa imaginação, onde “prostitutas a vereadores” (frase em destaque no vídeo de “M0ita Fl0res”) convivem na discoteca Iodo, com tráficos de influências e a “máfia da construção”. Esta música, com a colaboração de Alferes Malheiro, pseudónimo de Hugo Oliveira, (mais conhecido por outro pseudónimo, Minus & MRDolly) tem o ónus de contar com as frases “Santamaria no auto-rádio o disco é de ouro” e “numa numa ei”, uma mescla de referências pop-pimba que serve de pano de fundo, tal como em “Serenata em Enxo1000” onde Adriano promete tocar “Eros Ramazzotti na viola”.
A guitarra de Marco Duarte, que já era presença fundamental no anterior disco, é aglutinadora e um dos sons mais recorrentes na narrativa; ao lado da voz dá-lhe a pinta necessária, entre solos cheios de eco ou notas que pontuam as canções. O maior defeito é a repetição em algumas músicas, que parecem por vezes semelhantes umas às outras, em andamento ou na repetição constante de uma frase. Este não é de todo algo que nos afaste do disco e fica a ideia de que falta pouco para Miramar Confidencial ser daqueles álbuns de antologia, uma obra de ficção onde vídeo, áudio e texto convivem para dar uma ideia da Gaia litoral nos anos 90, onde há projectos megalómanos de construção com 12 andares, piscina e área de lazer, construtores civis com Fiat Uno e BMW Brancos, Sapateira e Arroz de Tamboril. Um mundo que David Bruno sabe muito bem trabalhar, entre o parolo da meia branca e o irónico que a exibe, sem se perder nas referências e nas piadas, sempre com bom gosto como pano de fundo a contar a história.
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