Caso você pertença ao time que julga Kurt Cobain um guitarrista mais interessante do que Eddie Van Halen, alerto que esta publicação não tem muita chance de lhe agradar. Se você viu a foto acima e já torceu o nariz sem ter ouvido do que esse quinteto é capaz, digo a mesma coisa. Aproveita e agradece meu alerta lá embaixo nos comentários, ok? Agora, se você é chegado em heavy metal de alta octanagem, guitarras soltando faíscas e uma cozinha que é pura cavalice, pode seguir adiante, pois o Racer X é pra você. Em uma cena que já era marcada por excessos, caso da Los Angeles oitentista, o grupo liderado pelo guitarrista Paul Gilbert e pelo baixista John Alderete foi ainda mais excessivo, não apenas no visual. Prodígio da guitarra desde a adolescência, Gilbert mudou-se da Pensilvânia para a Califórnia em 1984, com 17 anos, passando a frequentar o Guitar Institute of Technology e tornando-se instrutor. Lá, conheceu Alderete. Juntos, deram início à busca por músicos para formar um grupo. A vaga de baterista ficou com o austríaco Harry Gschoesser, outro aluno da instituição, enquanto Jeff Martin, que morava no Arizona e é nove anos mais velho que Gilbert, ficou com o posto de vocalista. Depois disso, as coisas ocorreram com certa rapidez, e, no final de 1985, o quarteto já tinha um álbum pronto para ser lançado.
Street Lethal [1986]
Com a bênção de Mike Varney, fundador do selo Shrapnel, colunista da revista Guitar Player e um dos responsáveis por ter revelado, até então, os guitarristas Yngwie Malmsteen e Marty Friedman, o Racer X soltou Street Lethal no primeiro dia de 1986. A capa, com os dizeres “With Paul Gilbert” abaixo do nome do grupo, entrega logo quem era o principal destaque. O jovem guitarrista já havia construído uma reputação que o colocava como grande promessa das seis cordas. Com o lançamento de Street Lethal, a promessa virou realidade, fazendo com que Gilbert fosse citado ao lado de outros ases que estavam alçando voo, caso dos citados Malmsteen e Friedman e de outros como Tony MacAlpine, Joey Taffola e Vinnie Moore. Como é um tanto previsível, muito daquilo que se encontra no disco tem a ver com o estilo neoclássico popularizado por Yngwie Malmsteen em seus primeiros registros, cujo sucesso foi surpreendente. Mas esse não é o único elemento chave na concepção de Street Lethal: doses cavalares de heavy metal no estilo dos ingleses do Judas Priest, mas com uma inegável pegada norte-americana, mais “solta”, dão o tom em um disco intenso do início ao fim, aberto com a instrumental “Frenzy”, que escancara as portas para que a faixa-título arrase nossos ouvidos com sua velocidade e os solos insanos de Gilbert. Não é só no instrumental que as referências ao Priest se revelam: Jeff Martin e seus agudos também aproximam-se ao trabalho de Rob Halford, do qual inclusive se tornaria amigo. Na mesma pegada insana da faixa-título, a banda apresenta uma de suas melhores canções: “Loud and Clear”, e ainda tem “Blowin’ Up the Radio” para os apaixonados por velocidade, assim como “Dangerous Love”. Mas é claro que o grupo não é feito apenas disso, e nenhuma prova é tão contundente quanto “Into the Night”, com uma cadência mais hard e outro trabalho marcante de Gilbert. Certamente uma das favoritas dos fãs. Já falei tanto do guitarrista que soei injusto, por isso afirmo: John Alderete é outro músico formidável, certamente superior à grande maioria de seus contemporâneos de cena, e olha que instrumentista bom é o que não faltava em Los Angeles. Harry Gschoesser também faz um ótimo trabalho, seu único problema é que seria eclipsado pelo substituto, sobre o qual discorro mais abaixo. Ainda na pegada hard, e um pouco mais comercial, “Getaway” foi o que de mais próximo a banda teve de um sucesso, tendo alguma execução nas rádios locais. “Hotter than Fire” e “On the Loose” também são ótimas pedidas, enquanto “Rock It” encerra o disco e surpreende ao lembrar ZZ Top. Uma curiosidade: a instrumental “Y.R.O.” não tem esse nome à toa. A sigla significa “Yngwie Rip-Off”, ou em bom português malandro, “chupinhação de Yngwie”, título dado em função da canção remeter a “Black Star”, presente no primeiro disco solo do sueco, Rising Force (1984). Mais que um “rip-off”, uma boa piada de uma banda que já demonstrava não se levar tão a sério. De negativo mesmo, só a produção no padrão da gravadora Shrapnel: seca e datada, algo que aconteceria com muitos dos seus contemporâneos.
Second Heat [1987]
O segundo disco do Racer X apresentou duas mudanças importantes no line-up, felizmente para melhor. Bruce Bouillet, aluno de Gilbert (apesar de ser um ano mais velho), ganhou o posto de segundo guitarrista, ajudando a cimentar a dinâmica que tornaria o som da banda ainda mais exuberante. Para o lugar de Harry Gschoesser, cujo visto para permanecer nos Estados Unidos expirou, entrou Scott Travis, que já havia sido sondado para ocupar essa vaga antes da gravação de Street Lethal. O resultado dessas mudanças refletiu-se no melhor álbum do então quinteto. Se o protagonismo de Gilbert já era desafiado por Alderete e seus dedos velozes, Bouillet então trouxe um complemento guitarrístico que elevou a sonoridade do Racer X a níveis inimagináveis, ajudando a construir harmonias de tirar o fôlego e causar inveja. Em se tratando de Travis, a importância não foi menor. Sua técnica apurada, especialmente o controle sobre os bumbos, é a principal responsável por aquela que talvez seja a música que melhor define o que é o Racer X, a instrumental “Scarified”. Como se não bastasse isso, Gilbert e Bouillet solam insanamente e Alderete acompanha a cavalice de Travis, também com direito a curtos solos de baixo. Quem gostou das canções mais velozes encontradas em Street Lethal tem em Second Heat mais material desse tipo, de qualidade tão boa quanto ou ainda melhor, vide “Sacrifice” e “Motor Man”. Os hards na linha daquilo de melhor que o Van Halen havia constituído também dão as caras, com destaque para “Living the Hard Way” (técnica e simplicidade unidas em prol da boa música), enquanto “Lady Killer” não fica muito para trás e “Hammer Away” sacia a fome daqueles que preferem algo mais evidentemente heavy metal, com riffs poderosos. Uma característica importante de Second Heat é a presença de duas canções não compostas pelo grupo. “Moonage Daydrem”, original de David Bowie em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972), dividiu opiniões, mas é muito do meu agrado e soa bem inserida no contexto do tracklist. A outra é “Heart of a Lion”, sobra das sessões de Turbo, álbum lançado um ano antes pelo Judas Priest e oferecida a Martin por seu amigo Rob Halford como presente de aniversário. Azar do Priest, pois se tivesse sido lançada pelo grupo inglês, seria o destaque maior de Turbo. Não à toa, o vocalista gravou-a em 2001, como material extra de seu ao vivo Live Insurrection. Novamente, a magra produção de Steve Fontano e Mike Varney é um aspecto que fica devendo em Second Heat, mas, por mais datado que soe, ainda se trata de um dos melhores álbuns lançados em 1987.
Apesar de estarem lotando o circuito de clubes na área de Los Angeles, isso não se refletiu na venda de discos e o Racer X não conseguiu, ao contrário de contemporâneos muito menos competentes, um contrato com uma grande gravadora, gerando insatisfação entre os músicos. O resultado disso foi a saída de Jeff Martin e de Paul Gilbert em 1988. O guitarrista, que havia chamado atenção do baixista Billy Sheehan (David Lee Roth, Talas), acabou formando com ele, mais o vocalista Eric Martin e o baterista Pat Torpey, a mais bem sucedida aventura musical de sua carreira, o Mr. Big, banda com a qual chegou ao topo da Billboard graças à balada “To Be With You”. Jeff Martin não teve a mesma constância, e sua empreitada mais famosa após sua saída do Racer X parece ter sido mesmo sua passagem pelo Badlands como baterista, substituindo Eric Singer. Com o quarteto, gravou o ótimo Voodoo Highway (1991) e Dusk, registrado entre 1992 e 1993, mas que só viria a ser lançado em 1998, quando a banda não existia mais.
John Alderete, Scott Travis e Bruce Bouillet até tentaram tocar adiante, mas, após poucos shows com os substitutos Chris Arvan (guitarra) e Oni Logan (vocais), a banda foi dada como encerrada. O trio formou um grupo com o vocalista John Corabi, mas logo Travis recebeu uma surpreendente oferta para se juntar ao Judas Priest, prontamente aceita e honrada até hoje. Para muitos, inclusive, Travis é o baterista definitivo do grupo inglês. Alderete e Bouillet seguiram com Corabi dando origem ao The Scream, lançando Let It Scream em 1991. As atividades, porém, foram interrompidas com a entrada do vocalista no Mötley Crüe, substituindo Vince Neil.
No período entre o término do Racer X e seu retorno, dois álbuns ao vivo foram colocados no mercado, gravados durante as duas apresentações finais do line-up clássico: Extreme Volume Live (1988) e Extreme Volume II Live (1992). Ambos são demonstrações evidente do poder de fogo do quinteto sobre um palco, trazendo inclusive músicas que não haviam sido lançadas, solos de todos os instrumentistas e um cover de “Detroit Rock City” (Kiss) cujo solo de guitarra é executado por Gilbert e Bouillet com os dentes, simultaneamente. Quem odeia a banda vai odiar ainda mais, mas quem curte a sonoridade do grupo e não vê nada de mal em malabarismos bem aplicados, tem tudo para se empolgar.
Technical Difficulties [1999]
Não subestimem o poder dos fãs. Pois foi um e-mail de um fã que potencializou a reunião do Racer X, em 1999. Como? Explico: Gilbert, que já havia encerrado seu ciclo no Mr. Big e lançado dois álbuns solo, recebeu um e-mail com críticas ao seu material mais orientado para a música pop, acusando-o de abandonar suas raízes malabarístico-metálicas. O que poderia ser só mais um “hate mail” tornou-se combustível para que o guitarrista reformasse o Racer X em sua formação clássica, com exceção de Bouillet, que preferiu não se juntar a ele, Alderete, Travis e Martin. O fã, inclusive, cuja alcunha era “Snakebyte”, acabou sendo homenageado na música “Snakebite”, uma das maiores pedradas que se encontram em Technical Difficulties, com riffs ganchudos aos borbotões. Quem apreciava o lado mais pesado do grupo, beirando o speed metal, tem no disco mais material para seu deleite: “Fire of Rock” e “17th Moon” satisfazem quem estava com saudade de ouvir o grupo “comendo” seus instrumentos. A faixa-título não é lá uma “Scarified”, mas é outra paulada instrumental de respeito com destaque para Travis. E por falar em instrumental, lembram de “Y.R.O”, de Street Lethal? Pois bem, Technical Difficulties tem “B.R.O.”, “Bach Rip-Off”, em homenagem a Johann Sebastian Bach e lembrança a “Y.R.O.”. No limiar entre a homenagem e a malandragem há “Bolt in My Heart”, cujo riff principal lembra muito o clássico “Wrathchild” (Iron Maiden), apesar da canção em si não ter tanta semelhança. Na seara mais hard, as melhores pedidas são “Poison Eyes” (que já havia saído em Extreme Volume II Live) e “Give It to Me”, enquanto “Waiting” é o mais próximo que o Racer X fez de uma balada, com uma forte cadência blues. Technical Difficulties não tem a mesma qualidade de Second Heat, mas foi um retorno com grande potencial para agradar todos que estavam sedentos por mais música do grupo.
Superheroes [2000]
Technical Difficulties foi bem recebido e chegou a disco de ouro no Japão, terra onde Gilbert havia constituído uma base de fãs muito sólida, especialmente graças ao seu trabalho com o Mr. Big. Com essa resposta positiva, não tardou para que o mesmo quarteto retornasse ao estúdio e dele saísse com seu melhor disco pós-Second Heat, Superheroes. A obra é a mais variada de sua carreira, abrangendo desde aquelas faixas pesadas e velozes que a banda sabe tão bem colocar em prática até um pequeno épico, caso da música de encerramento, “Time Before the Sun”, envolvente e bem trabalhada. Outra sem precedentes na carreira do grupo é “Evil Joe”, com linhas e efeitos vocais totalmente atípicos, com um leve pé no nu metal. O lado mais hard é muito bem representado na forma das ótimas “Let the Spirit Fly”, “O.H.B. (One Hot Bitch)” e “Mad at the World”. A última é uma composição do final dos anos 1980 que havia sido usada por Paul no Mr. Big com outra letra e outra afinação, ganhando o nome de “My Kinda Woman”. Difícil decidir qual é a melhor versão. As indefectíveis instrumentais também estão presentes: “Viking Kong” é muito boa, com destaque total para os solos de Gilbert na linha mais neoclássica, mas “King of the Monsters” é aquela pancada para botar um enorme sorriso na boca dos fãs e colocá-los para bater cabeça. Melhor ainda é a faixa que dá o nome ao disco, com Martin soltando os agudos e o trio de instrumentistas colocando a casa abaixo. Cascuda também é “Dead Man’s Shoes”, comandada pelos riffs de guitarra. Há ainda uma boa versão para “Godzilla”, original do Blue Öyster Cult, que se encaixa perfeitamente no bem humorado conceito do álbum, mostrando os quatro músicos caracterizados como super heróis completamente ridículos. Inclusive, Superheroes foi lançado no Japão como Adventures of Racer X-Men, fincando ainda mais os pés na autoparódia. Outra curiosidade é que o disco foi mixado por Bruce Bouillet, deixando claro que sua recusa em retomar atividades com a banda não significou um rompimento de relações. A turnê gerou mais dois discos ao vivo: Live at the Whisky: Snowball of Doom (2001), gravado no célebre Whisky a Go Go, em Hollywood, e Snowball of Doom 2 (2002), registrado em Yokohama (Japão).
Getting Heavier [2002]
O último disco lançado pelo Racer X também é o menos interessante. Há boas canções, mas a fórmula mostrou sinais de desgaste, como evidencia a mal escolhida música de abertura, “Dr. X”, que não engrena, apesar da boa performance de Scott Travis. Bem melhor é “Lucifer’s Hammer”, essa sim adequada para abrir o álbum de um grupo notório (para o bem e para o mal) por não fazer cerimônia para fincar o pé no acelerador e sem o mínimo medo de soar clichê. “Golden God” é outra boa canção, com um timbre de guitarra que evidencia esmero maior na produção (a cargo de Gilbert), aspecto no qual o Racer X nunca havia sido lá muito aplicado. A divertida “Heaven in ’74”, bem mais simples para os padrões da banda, traz a curiosidade de ser a primeira obra do grupo com vocais divididos entre Martin e Gilbert. Sua letra enumera várias coisas que seriam alvo de saudades para os integrantes, entre elas vários artistas, como Elton John, Iggy Pop, Led Zeppelin, ZZ Top e David Bowie. “Empty Man” é um hard com aquela intro guitarrística de primeira linha, como Paul já fez outras vezes no próprio Racer X (“Into the Night”, “Poison Eyes”, “Viking Kong”) e também no Mr. Big (“Green-Tinted Sixties Mind”, “The Whole World’s Gonna Know”, “Stay Together”). O maior problema de Getting Heavier é o excesso de canções midtempo menos criativas que a média, ocupando especialmente a segunda metade do tracklist. Mesmo a geralmente infalível faixa instrumental passa longe de empolgar tanto quanto aquelas editadas em álbuns anteriores. Talvez o fato do grupo ter lançado três discos em um espaço de apenas três anos, algo impensável para muitos artistas já naquela época, tenha pesado. Ao menos os músicos tiveram a sapiência de parar antes de transformar o ato de compor no automático, quase como uma obrigação, o modus operandi.
Após o lançamento de Getting Heavier, cada integrante seguiu caminhos distintos. Paul Gilbert concentrou-se em sua carreira solo e reuniu-se com os parceiros de Mr. Big em 2009, permanecendo no grupo até hoje. Scott Travis, que sempre levou o Judas Priest como sua principal atividade, seguiu sendo uma peça essencial na sonoridade do gigante metálico inglês. Jeff Martin começou uma carreira solo e participou de álbuns e turnês de vários artistas, especialmente como baterista, entre eles Michael Schenker e Pat Travers. O destino mais improvável foi o de John Alderete: convidado para um teste no The Mars Volta, o baixista ganhou o posto em 2003 e permaneceu no grupo até o final de suas atividades, em 2012, tendo também trabalhado com o guitarrista Omar Rodríguez-López em carreira solo e com o vocalista Cedric Bixler-Zavala.
Em 2009, o Racer X reuniu-se para um show durante a NAMM, a maior feira da indústria musical em todo o planeta. Essa foi a única oportunidade em que Gilbert, Alderete, Travis e Martin dividiram um palco desde então. Se ainda há alguma oportunidade para que o grupo lance mais algum disco ou saia em turnê, pouco (ou quase nada mesmo) tem sido comentado a respeito. Não creio que uma pressão dos fãs funcionaria tão bem desta vez, mas, ao que parece, essa porta nunca foi fechada.
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