E é quando o metano para já armazenado nas calotes glaciares se libertar que conheceremos enfim o final desta coisa: o cheiro no ar, meus amigos, será de peido perene. Qualquer esperança é para fazer rir e Adolfo sabe-o.
ATENÇÃO este texto contém spoilers e convém ouvir o disco primeiro.
É curioso que no mesmo mês tenham saído dois excelentes álbuns de provavelmente os maiores monstros da literatura-na-música, Nick Cave com os Bad Seeds e Adolfo Luxúria Canibal com os Mão Morta. Mas enquanto o primeiro canta uma espécie de optimismo espiritual quasi religioso, o cá nosso não desilude e No Fim Era O Frio é um conto de desesperança, claro, em que a nossa espécie se confronta finalmente com o apocalipse ambiental, ao mesmo tempo que anseia pela salvação vinda de possíveis extra terrestres mais inteligentes do que nós. No fundo, não diferindo assim tanto do misticismo de Cave, mas se com o australiano deus e o amor são certamente benévolos e salvadores, com Canibal a coisa não é bem assim, graças a deus. Para regozijo nosso, a luz ao fundo do túnel é um sinistro comboio que se aproxima em missão de carnificina total e a única esperança possível é uma morte indolor e rápida – lol.
Agora, é preciso atentar que a probabilidade de haver um planeta semelhante ao nosso onde possa ocorrer vida é considerável. Num Universo incomensuravelmente extenso e antigo torna-se difícil acreditar que apenas aqui, na Terra, isto, a vida, tenha acontecido. Mas por que será que tendo nós perscrutado tanto do espaço apenas o silêncio foi encontrado? A teoria do Grande Filtro ajuda a perceber: nenhuma civilização poderá jamais evoluir ao ponto de ser capaz de fazer viagens inter estrelares sem se auto-destruir primeiro, devido a esgotamento de fontes de energia e colapso ambiental, género ilha da Páscoa. Tal como estamos a observar em directo, não há solução para os nossos problemas ecológicos que não passem pelo empobrecimento voluntário e drástico. Requer apenas um pouco de senso comum para concluir que, por exemplo, a substituição dos nossos actuais carros por outros eléctricos não resolverá nada à escala global, talvez até pelo contrário. Toda e qualquer actividade baseada no modelo económico para o qual não queremos encontrar alternativa conduzir-nos-á inexoravelmente para uma miséria inimaginável que provavelmente nos extinguirá, muito muito antes de termos podido adquirir tecnologia que nos permitisse colonizar a lua sequer, quanto mais um planeta para além do nosso sistema solar. E é quando o metano para já armazenado nas calotes glaciares se libertar que conheceremos enfim o final desta coisa: o cheiro no ar, meus amigos, será de peido perene. Qualquer esperança é para fazer rir e Adolfo sabe-o.
Ainda assim, no escasso tempo que ainda temos a única coisa que vale mesmo a pena fazer é: ler ou reler a obra de Dostoievski, ver gravações antigas dos jogos das equipas treinadas pelo Jorge Jesus, visionar o MadMax Fury Road ad nauseum e com mega sistema de som, e aguardar que os Mão Morta lancem um novo disco.
Pra já este, No Fim Era O Frio, é uma obra particular no universo dos MM, mesmo dentro dos seus álbuns conceptuais, por tão linear ser a sua narrativa. Na verdade, consumi-la não difere muito de ouvir um conto no Audible. Luxúria, no seu melhor, transporta-nos para o seu mundo habitual de fantasmas esqueléticos, punhais de dor, mortes e bafejos, becos húmidos, cadáveres, almas penosas e pervertidas, naquele seu jeito fora-de-moda e erudito que me leva para Gogol, Kafka, Marquês de Sade. Quanto à música em si, mais guitarras menos sintetizadores ou samplings, arranhando os bons tempos de Sonic Youth, de um rock entre o experimental e o pop. A destacar a “Oxalá”, cantada em coro e fazendo lembrar Philip Glass, com uma melodia que sugere um surpreendente optimismo, uma espécie de paródia a um qualquer sentimento feel-good, sendo que talvez a melhor esteja guardada para perto do final em “A Minha Amada”, que me leva logo para a faixa “O Divino Marquês” do disco O.D. Rainha do Rock&Roll de 1990, em que se torna impossível não atentar à letra, a música apenas como meio espinhoso onde uma sinistra e antiga narrativa se desenvolve, com princípio meio e fim. Não obstante a sua capacidade valorosa de song writing, talvez seja aqui, na música-esqueleto de uma performance multimedia composta por rock metal psicadélica jazz electrónica e pautada pela literatura de Luxuria Canibal, onde os Mão Morta encontram sublimação.
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