Rubberband é um delírio de jazz-funk sintetizado, num disco que mistura as gravações originais de Miles Davis dos anos 80 com muito trabalho contemporâneo, sem que se vejam as costuras
1985 foi um ano importante na vida de Miles Davis. Acabara de deixar a Columbia, sua editora de muitos e muitos anos, para cair nos braços da Warner, que há muito o perseguia. Essa mudança apanhou-o a meio de mais uma transição artística, num período em que o músico procurava adaptar-se ao meio emergente dos anos 80 e tentava colocar o seu jazz algures no mainstream, se não comercialmente pelo menos em termos de atenção, que perdera.
Nessa fase, Miles ficava sobretudo fechado em casa, vendo televisão bem alto, fascinado com a MTV e os sons urbanos que por aí lhe chegavam. Quem nos conta tudo isto é Vince Wilburn Jr, músico e sobrinho de Miles que, nessa altura, vivia lá em casa. Com um novo contrato numa nova editora, Miles atirou-se ao projecto seguinte, com o nome de código de “Rubberband”. Realizou várias sessões de gravação, buscando um som que casasse o seu trompete inconfundível com os sons que os miúdos ouviam: o funk, o hip-hop ainda a afirmar-se e algum soul/R&B mais plastificado.
Acontece que a Warner não ficou particularmente satisfeita com o que ouviu e o músico acabou por perder entusiasmo. Apesar de ter tudo planeado, nomeadamente a utilização de vocalistas, guardou as gravações e partiu para novo projecto, que acabaria por resultar em Tutu, que tem bastantes ecos daquilo que Davis experimentara nas sessões para Rubberband (mas sem vozes!).
Durante décadas, Rubberband ganhou a aura de um tesouro escondido, um célebre “disco perdido” de um Miles Davis fervilhando de criatividade. Agora, os descendentes de Miles e guardiões do seu espólio decidiram trazer o tal disco a público. Acontece que Rubberband não era um álbum acabado e que simplesmente ficou por editar, ao contrário por exemplo de Both directions at once, de John Coltrane, que viu a luz recentemente. São gravações de Miles com músicos escolhidos por ele, em sessões dirigidas por si e com a sua visão, mas que não ficaram acabadas para edição.
Ou seja,o que temos aqui é um híbrido. Partindo dessas gravações, os três produtores originais, um dos quais o sobrinho Vince Wilburn Jr – que também foi baterista nessas sessões – pegaram no material gravado, chamaram duas vocalistas e trabalharam em cima disso. O resultado que conhecemos agora é um festim musical encharcado em anos 80. Sintetizadores, baixo funk, num disco feito mais de ritmo do que do jazz clássico ou até do jazz/rock mais progressivo que conhecemos a Miles.
Ouvimos ecos de hip-hop – na estrutura rítmica e não nas vocalizações – e R&B, num som sintetizado e por vezes delirante, cheio da cor dessa década maldita, os anos 80. Os produtores e toda a equipa responsável por esta empreitada asseguram que foi respeitado – no trabalho contemporâneo em cima das gravações – todo o espírito transmitido por Miles no início da empreitada abandonada, mas admita-se que é impossível saber onde está o dedo de Miles e o que é reimaginação da equipa actual.
Talvez por isso, Rubberband não podia esperar o respeito total dos puristas, naturalmente desconfiados de quanto é trabalho do génio e quanto é a liberdade dos músicos actuais. Não obstante esse ponto, o resultado final é deliciosamente datado, transportando-nos imediatamente para essa década plástica e livre, de que Davis queria também ser parte. E é tudo, obviamente, muito bem tocado e bem gravado.
Não é um dos melhores discos de Miles Davis, autor de uma obra desigual, custo consciente de uma vida sempre em mutação estética e musical. Mas é um projecto muito interessante e que se ouve com muito prazer, numa viagem no tempo para mais de 30 anos atrás.
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