Um manifesto e uma convocatória: adolescentes de todo o mundo, não tenham medo da vossa diferença, da vossa estranheza, da vossa verdade. Pelo contrário, celebrem-nas. O mundo é vosso.
Mais tarde ou mais cedo, este momento teria de chegar. O momento em que eu e a minha filha ouviríamos a mesma canção. Foi a “Bad Guy”. Filhota, do alto dos seus doze anos, ficou espantada: “O meu pai a ouvir música de 2019!?” Acho que não me perdoou. Billie tem 17 anos, e a sua base de fãs é adolescente também. Toda a geração se define renegando a anterior. Eu era o intruso. O velhote que queria parecer cool mas que estava a ser só triste. Ouch.
Billie não é uma adolescente qualquer. É a adolescente mais popular do planeta. E não são apenas os 32 milhões de seguidores no Instagram. Há um marco bem mais significativo: foi a primeira artista nascida no século XXI a pôr um disco no topo da tabela de vendas. A geração milénio – a que aprendeu a aceder ao youtube antes de dizer “pai” e “mãe” – tem finalmente a sua porta-voz. Como antes Cobain o fora da minha. Como antes Lennon e Dylan o foram da anterior. Quer o quisessem, quer não. Billie até quer e ainda bem.
Uma geração que tem Billie como porta-voz é uma geração salva, porque Billie é real. Porque Billie não foi fabricada pela indústria. Porque é Billie, em conjunto com o seu irmão, que escreve as suas próprias canções. Porque é o mano Finneas O’Connell que produz tudo no seu quarto, mais do it yourself era impossível. Porque Billie se recusa a ser um objecto sexual, vestindo roupas orgulhosamente largas e arrapazadas, fazendo um manguito às convenções simplistas da beleza feminina. Porque dispensa a bengala dos convidados especiais e produtores afamados, truque manhoso da indústria para sacar mais uns quantos cliques. Porque ao longo da história da pop há sempre estes momentos em que as pessoas se fartam do excesso de artifício e reclamam um pouco de verdade. A verdade chegou e chama-se Billie.
O hype à sua volta não podia ser maior. Armadilha terrível: não é fácil estar à altura de expectativas tão insanas. Mas Billie passou a prova de fogo do primeiro LP, confirmando que há um talento criativo bem concreto a sustentar o seu sucesso, e não uma invenção mediática construída no vazio. Este hype não mente; esperemos que não a destrua.
O disco é triste, quase gótico, ou não fora Billie herdeira da pop negra de Lana del Rey e de Lorde. As comparações devem, porém, ficar à porta. A estética de Eilish é fresca e original. A sua voz é etérea, um anjo triste suspirando no jardim do Éden, uma voz que se desdobra em várias, formando bonitas harmonias celestiais. A sua boca está encostada ao microfone, sem distância de segurança, delicada, íntima, quase sussurando.
Mas às vezes o anjo zanga-se, cheio de bazófia e estilo. Nessas alturas, as baladas melancólicas e intimistas à James Blake dão lugar a um groove malicioso, com baixos gigantes de trap a fazerem estremecer o sub-woofer. É então que a rapper que existe em Billie sai do armário, espalhando um flow gabarolas. É um som contemporâneo, perverso, claustrofóbico mas dançável, sombrio mas bem-disposto. “Bad Guy” tem balanço, funciona numa pista de dança, diverte. E ainda há espaço para uma terceira categoria de canções, malhas descaradamente pop à Lilly Allen, como a orelhuda “All the Good Girls go to Hell”.
Em comum a todo o disco, além do bom gosto e do minimalismo, temos a modernidade, a atmosfera cinematográfica e a sensação de espaço. As letras são pesadas: falam da solidão, do vazio, do silêncio, dos escapes estúpidos mascarando a distância, dos corações quebrados e vidas partidas. Ao mesmo tempo, há também humor e parvoíce orgulhosamente teenager, tornando a violência emocional um pouco mais digerível.
Este disco é um manifesto e uma convocatória. Reza assim: adolescentes de todo o mundo, não tenham medo da vossa diferença, da vossa estranheza, da vossa verdade. Pelo contrário, celebrem-nas. O mundo é vosso. E de Billie Eilish também.
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