quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Lena d’Água – Desalmadamente (2019)


 

A nossa rainha pop dos anos 80 está de volta com um bonito disco, mandando a nostalgia às urtigas, abraçando com gosto a contemporaneidade.

Que bonito este regresso de Lena d’Água, 30 anos depois. E que justo o reconhecimento do seu importante legado. Lena d’Água foi, nos anos 80, um ícone pop e uma sex symbol. Mais: foi uma incrível intérprete. E sempre lhe souberam escrever canções à altura da sua voz fresca e sensual. Mas Lena d’Água esqueceu-se de si própria durante demasiado tempo. E o mundo foi-se esquecendo também. Foram muitas as homenagens ao nosso passado pop – Variações, Xutos, GNR, eu sei lá – e Lena sempre, sempre à espera…

Até que as coisas começaram a mudar. Tudo começou talvez em 2011 quando os Linda Martini fizeram uma inesperada versão do clássico “Sempre que o meu amor me quiser”. Quando Benjamim lançou Auto-Rádio em 2015, naquilo que foi o seu primeiro disco em português, uma das referências invocadas com orgulho foi precisamente a de Lena d’Água. Ora este seu regresso em Desalmadamente decorre todo ele deste carinho que uma nova geração – a que era ainda criança quando Lena estava na berra – agora lhe dedicou.

À frente desta equipa-maravilha está Pedro da Silva Martins, que foi outrora o leme criativo dos Deolinda, e que é um dos mais talentosos escritores da sua geração. Foi Pedro que escreveu todas as canções do disco, melodia e letra, e que bonitas são as dez cantigas. A tal ternura de que falávamos manifestou-se no processo de escrita. Pedro escreveu cada canção a pensar na sua amiga Lena, apanhando-lhe a alma em cada acorde, captando-lhe os segredos em cada verso. Desalmadamente é uma autobiografia de Lena D’Água, que por acaso foi escrita por outra pessoa…

O papel de Pedro da Silva Martins acaba aí, na escrita das canções. Demitiu-se por completo da fase seguinte: a da interpretação e produção. É aí que entra a demais trupe: o eterno fã Benjamim (a mãe chama-lhe Luís), o António Vasconcelos Dias (Golden Slumbers, Benjamim) e os quatro indefectíveis dos They’re Heading West (Francisca Cortesão, Mariana Ricardo, João Correia, Sérgio Nascimento). Que equipa de sonho, minha gente. Que bom gosto, que depuração. Que inteligência nas soluções encontradas, como quando brincam com cadências maquinais trôpegas em “Formatada” ou quando piscam o olho ao ouvinte melómano numa citação dos Cure em “Minutos”. E a própria Lena d’Água, com o seu saber, com a sua experiência, dá o retoque final.

O resultado é um grande disco pop: fresco, soalheiro e divertido. Sabe a Rita Lee e a algodão doce, a Entre-Aspas e a calippo de limão, a Clã e a melancia no Verão. Mais: sabe a aqui e agora, a Lena d’Água no século XXI. Esse é aliás um dos pontos fortes do álbum. Seria muito fácil encostar-se à sombra da nostalgia, piscando o olho ao kitsch dos anos 80. Mas Lena não é assim. Lena é de 2019, vivendo intensamente o presente. O seu namoro com o camp nos seus discos dos anos 80 só lhe dá orgulho: canções maravilhosas que captaram na perfeição os ares do tempo. Mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Desalmadamente é contemporâneo, sofisticado e elegante, sem uma gota de gosto duvidoso a manchar-lhe o pano alvo.

E depois vem a incrível voz que Lena d’Água ainda tem. Uma voz inesperadamente jovem, como se ainda tivesse 23 anos. Uma voz que se ri, ufana, das agruras que a vida lhe deu. Uma voz milagre.

Lena d’Água, com 63 anos de idade, três décadas depois do seu último disco, mostrando ao mundo que ainda tem cartas para dar. Ficar parada? Antes o poço da morte que tal sorte…


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