terça-feira, 5 de março de 2024

Los Hermanos – Los Hermanos (1999)

Miúdos com 20 e poucos anos, sofrendo de amor, nos anos 90 no Rio de Janeiro. Os Los Hermanos pegam nestas premissas, transformam em algo novo e lançam um disco vigoroso e quase agressivo, que revela a excelência dos compositores, traz frescura à música vinda do Brasil e inicia um dos fenómenos de maior culto.

Escrever sobre este disco, agora, é batota. Teria sido interessante escrever há vinte anos, quando saiu e era “apenas” o disco de estreia de uma banda de miúdos brasileiros que tinham potencial mas não fazíamos ideia sobre o que seria o futuro do grupo. Mas escrever agora, quando já conhecemos o contexto e sabemos a grandeza que os Los Hermanos atingiram, soa a menos genuíno e é mais fácil falar em brilhantismo.

Mas tentemos recuar até 1999. O rock está numa fase meio pantanosa. De forma superficial, sem atender ao que se faz de brilhante nas camadas underground, no fim dos anos 90 o grunge, a britpop e o trip-hop acabam de queimar os últimos cartuchos; o nu-metal (inserir expressão de vómito) está a ganhar terreno; ainda vai resistindo algum hardcore e punk-rock (já numa fase descendente mas ainda com a pujança de bandas como NOFX ou Offspring); este punk-rock também começou a esticar-se para os terrenos do ska (Mad Caddies, Reel Big Fish, Rancid). E no Brasil, há sempre samba, bossa e Carnaval, os mestres reinventam-se, Gabriel o Pensador faz chegar o rap à classe média e o rock ora funde o reggae e o funk, ora aponta aos skaters (Charlie Brown Jr) ora se vira para o humor, com os Raimundos e Mamonas Assassinas.

No meio disto, nasce em 1997 uma banda que – absorvendo, digerindo e cuspindo o que não interessa – se distingue disto tudo e se eleva a um patamar de excelência. Podemos falar em excelência hoje, à luz da carreira do grupo, talvez não o pudéssemos dizer só com base no primeiro álbum. Mas a verdade é que em Los Hermanos já estavam todas as pistas – meio escondidas, meio difusas, num álbum ska-punk-hardcore que é maioritariamente agressivo e estridente. Porém, uma escuta mais atenta permite detectar requinte.

Só que Los Hermanos é um fruto do seu tempo e do seu lugar. Rio de Janeiro, final dos anos 90. É claro que tem samba, mas está debaixo das guitarras eléctricas, da bateria frenética em 1/1 e da voz que chora a gritar. É claro que tem tropicália, mas só a encontramos a espaços em alturas em que é preciso respirar. Porque, acima de tudo, é um disco de rock alternativo banhado de ska, que se aproxima por vezes do punk-hardcore. Ainda por cima com uma formação clássica desse ska punk – além da guitarra-baixo-bateria, uma secção de saxofone-trompete-trombone. A diferenças para os seus contemporâneos? A riqueza das melodias, a inovação no rumo da secção de metais e o assunto. Ao contrário da maioria das bandas que militava nestes estilos e cuja escrita era ou hedonista ou de crítica social, os Los Hermanos cantam sobre amor.

Neste caso, amor que correu mal. Todo o disco é escrito com coração partido, num lamento que estamos habituados a ouvir cantado num registo bem mais intimista, em que o sofrimento do sujeito cantante é acompanhado pelo carpir de uma guitarra acústica ou piano. E logo aqui os Hermanos fazem com mestria uma fusão improvável entre música abrasiva e letras românticas quase lamechas. Ao longo das 14 canções do disco, ficamos com sincera pena do tipo que sofreu os maiores horrores por se ter entregue às mãos de mulheres cruéis de coração empedernido, que traem sem remorso. Daí que as letras sejam muitas vezes gritadas, num choro raivoso de quem ora lamenta o amor perdido, ora encontra a força para continuar a vida longe da fonte de todos os males.

Sem precisar de atentar nas letras das canções, só os títulos já dão uma indicação clara do conteúdo: “Lágrimas Sofridas”, “Sem Ter Você”, “Vai Embora”, “Tenha Dó”, “Outro Alguém”. Olhando com mais detalhe para os poemas das canções, embora sejam bastante directos, mostram já um trato da língua que – mais uma vez – não encontramos com facilidade quando ouvimos outras bandas que praticam este tipo de som. E com um pormenor curioso, no que diz respeito ao português escrito no Brasil: o uso da segunda pessoa do singular, por oposição à terceira pessoa. É pouco habitual ouvir-se coisas como “não mereces”, “és de tudo que mais belo existe” ou “minha paixão tu não compras mais com o teu olhar”. Como veremos nos discos seguintes, a escrita dos Los Hermanos é elaborada e de ricos contornos literários, mas neste álbum mais “simplista” já estão alguns elementos que permitem antever uma força maior.

Falar de canções isoladamente seria inútil, porque são todas incríveis. Todas cheias de dinâmicas, descargas de adrenalina intercaladas com breves pausas melódicas, que servem para dar embalo a novas rajadas. Mas é impossível destacar umas em detrimento de outras, são 14 canções que devem ser ouvidas em bloco.

Sendo o disco em que a estética mais difere dos restantes, faz todo o sentido no percurso da banda e, acima de tudo, permite ver o grandioso amadurecimento do grupo, que apenas dois anos depois lança Bloco do Eu Sozinho. Talvez esse enriquecimento tenha sido potenciado pelo estigma de este ser o álbum que tem a “Anna Júlia”. Foi o primeiro single, fez vender milhares de exemplares, pôs o grupo a tocar em tudo o que era festival e tocou milhões de vezes até à exaustão em rádios, discotecas e festa de estudantes. Talvez para se distanciar dessa maldição, os Hermanos fizeram – em apenas dois discos – o que muitas bandas demoram 10 anos a alcançar. Porém, “Anna Júlia” é uma canção excelente, só que não pode nunca ser usada de forma redutora para definir nem o álbum nem a banda. Está para os Los Hermanos um pouco como a “Here Comes Your Man” está para os Pixies.

Mas além desse hit instantâneo, Los Hermanos está cheio de outros temas que superaram a prova do tempo, basta ver que na recente digressão a banda tocou sempre umas 6/7 canções deste disco. E, principalmente, este é o álbum que deu início a um fenómeno de culto desmedido (veja-se a importância da banda nos fãs nesta mini-série) e nos deu a conhecer dois músicos incríveis, multi-facetados, que acarinhamos até hoje em tudo o que fazem, a solo ou com outras bandas.

Marcelo Camelo, fundador e principal compositor de Los Hermanos, é um esteta, homem culto com apurado gosto e refinado talento para escrever canções. A Rodrigo Amarante podemos aplicar os exactos mesmos adjectivos, embora neste disco ele só assuma a escrita de duas canções, nos próximos álbuns vai ganhar maior preponderância. E temos aqui uma das mais brilhantes duplas de compositores (que pode bem figurar não muito longe de outras duplas famosas como McCartney-Lennon, Simon-Garfunkel ou Waters-Gilmour), capazes de criar hits instantâneos ou obras mestras de maior densidade. Quem pense ser blasfémia tais comparações, desengane-se – a qualidade das criações de Camelo-Amarante ombreia com os citados gigantes, só não atingem um estatuto tão abrangente a nível mundial porque não cantam em inglês. Mas só mesmo por isso. Comprove-se, ouvindo os restantes três discos de originais dos Los Hermanos.


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