sábado, 30 de março de 2024

Otis Redding – Otis Blue: Otis Redding Sings Soul (1965)


 

Juntando o frenesim de Little Richard à subtileza de Sam Cooke, Otis Redding oferece-nos um disco de soul perfeito.

Nos anos 60, a Motown vende uma versão diluída e esbranquiçada da soul, para emergir do nicho R&B e conquistar o mercado mais apetitoso da pop. A Stax Records segue o caminho oposto, apresentando uma soul negra sem concessões, orgulhosa das raízes gospel e blues do sul profundo. A posição geográfica ajuda pois tudo se passa na rústica Memphis, mil quilómetros a sul de Detroit. A capital da southern soul – soulsville, como ficou conhecida – fervilha de talento, mas rei só há um, Otis Redding, o menino de oiro.

Redding já tinha dado que falar nos seus dois primeiros discos, mas é ao terceiro tomo que nos oferece a sua obra-prima, o coeso Otis Blue, um álbum sem gordura alguma, só filé mignon.

Otis escreve poucos dos seus temas, mas quando o faz são bombas atómicas como “I’ve Been Loving You Too Long” e “Respect”. O primeiro é uma balada imortal, que vai crescendo em paixão e desespero. Os instrumentos ajudam-no na escalada, com o piano e a bateria cada vez mais nervosos, e os sopros subindo até ao clímax. “Respect” é frenética, com a tarola avançando sempre cheia de bazófia. Mas Otis teve o azar de Aretha Franklin lhe roubar a canção. Ainda por cima, como para castigar o chauvinismo latente da letra (um gajo que exige respeito da mulher quando chega a casa esfalfado do trabalho), Aretha vinga-se, fazendo uma versão feminista que suplanta a original. Karma is a bitch.

Não faz mal. Otis fará o mesmo, apropriando-se das canções dos outros com tamanha originalidade que elas passarão a pertencer-lhe.

O companheiro mais roubado será Sam Cooke, numa clara homenagem ao mentor recentemente desaparecido. “Shake” é desvairada, rebentando a pista de dança com os seus gritos selvagens. “Wonderful Time” é, talvez, o momento mais pop do disco, não obstante a voz sempre roufenha e gutural de Otis. “Change is Gonna Come” chora a odiosa segregação racial, primeiro com sopros fúnebres, e depois com a sua voz magoada. Mas há também esperança no seu canto, a mudança que há-de vir. É essa complexidade emocional, expressando ao mesmo tempo sentimentos contraditórios, que faz de Redding um intérprete genial.

Como que para provar que não receia a concorrência da Motown, nada como repescar um dos seus êxitos recentes: a doce “My Girl”, imortalizada pelos Temptations. A versão de Otis é mais crua, substituindo as harmonias vocais e as cordas do original pelos – sempre mais rudes – sopros à moda da Stax. A voz de Redding quase nunca recorre ao falsete mas em “My Girl” abre uma excepção, para melhor expressar a sua vulnerabilidade.

“Satisfaction” tem também o privilégio de ser reinventado por Otis. E as voltas e baldrocas que esta canção deu. O original é uma declaração de amor dos Stones à música negra americana. Redding retribui o favor, imitando a imitação. Mas agora ensina aos putos brancos como realmente se faz a coisa. A sua versão é mais selvagem e arrebatada, fazendo Jagger parecer um menino de coro. O bombo também ajuda à festa, batendo oito vezes por compasso num último arrebatamento. Nunca subestimar a importância da banda da casa: os enormes Booker T. & the M.G.’s.

E Otis ainda arranja tempo para cantar um “bluesinho”. Falamos de “Rock me Baby”, um clássico de B.B. King. A voz de Redding é agora pura lascívia. O solo de guitarra de Steve Cropper dá o remate final, com a sua mágica simplicidade.

Otis Blue é o melhor álbum soul dos anos 60, ponto. Nesta rodela, Redding entornou toda a sua alma, rindo e chorando, muitas vezes ao mesmo tempo. O disco tem melodia e groove para dar e vender. Mas o que realmente o torna grande é o seu extravasante sentimento. Uma torrente de emoções que leva tudo a eito. A alma de todo um povo a transbordar de tão cheia.



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