É possível contar a história de amor mais bonita do mundo sem nunca abrir a boca? Para Sam The Kid é.

Neste preciso momento, enquanto o leitor lê estas palavras, um rapaz e uma rapariga acabaram de trocar olhares. Olhos nos olhos. Frações de segundos. O que é que vai sair daquela troca de olhares? Ninguém sabe. Pode ser até que não dê em nada. Pode ser que a troca de olhares seja apenas isso, uma mera troca de olhares.

Mas o rapaz e a rapariga continuam a olhar um para o outro. Pode ser que a troca de olhar seja o começo de algo bonito.

Os jovens, por não terem experiência, são teimosos, tortos e casmurros. Talvez seja mais seguro não confiar o futuro da humanidade nessas mãos teimosas, tortas e casmurras. Ou talvez não: os jovens, para além dessas malícias, detém uma qualidade maior e única, que só a eles pertence: são, justamente, jovens. Estão, enquanto a eternidade da juventude durar, frescos. E têm uma inacabável capacidade de sentir. Os jovens sentem e armazenam sentimentos.

Em dezembro de 2002, Sam The Kid, com 23 velas sopradas, entrega ao mundo a sua visão sobre o amor.

Nessa altura («nesse tempo» …), o rapper já tinha nome no universo do hip-hop português. Em 1999 havia lançado o seu disco de estreia, Entre(tanto), e, dois anos depois, em 2001, seria a vez de Sobre(tudo) abandonar a língua e o coração do rapper para sair cá para fora, para os nossos ouvidos.

Assim, Beats Vol.1 acaba por ser o terceiro trabalho de Samuel Mira. Apesar de, nos dias de hoje, ser uma das suas obras menos (re)conhecidas, este álbum de instrumentais continua a ser a pedra angular do portefólio do rapper, que abriu os olhos do mundo a Chelas.

Sam conseguiu construir a típica e genérica «história de amor» em apenas 17 faixas. «Típica» e «genérica» porque, lá está, todos nós, a dada altura da nossa vida, a vivemos. No entanto, não há nada nem de típico, nem de genérico neste trabalho: acaba por ser um dos projetos do género mais originais que eu já pude introduzir aos meus ouvidos. É que Beats Vol.1 é, nada mais, nada menos, do que a própria razão da existência de Sam The Kid: o álbum conta a história de amor que os pais do músico escreveram em conjunto.

O amor é um sentimento que nos é comum. Todos nós vivemos o amor. Vivemo-lo, porém, com pessoas diferentes e em tempos diferentes. E é por isso que é especial. Os pais de Sam The Kid viveram um amor que foi só deles. O próprio Sam já terá vivido (espero eu) um amor que também só a ele pertence. Espero que o leitor também tenha vivido, esteja a viver, um amor que só a si lhe pertence. Eu estou.

Beats Vol.1 também pode ser entendido como uma manifestação de amor que o artista quis oferecer à sua musa, a Música. A relação que Sam The Kid construiu com a sua musa é inspiradora aos olhos de toda a gente. Todos reconhecem a devoção que o músico de Marvila tem para com a Música. Admito que gosto muito deste paralelismo, até porque me obriga necessariamente a associar a lírica da faixa “Retrospetiva De Um Amor Profundo” (aos meus olhos… e aos meus ouvidos… a «magnum opus» de Sam The Kid), faixa apresentada, quatro anos depois, em Pratica(mente), com a mensagem de Beats Vol.1.

Mas isso sou eu.

As histórias não se contam apenas com palavras. As palavras «simplesmente» ajudam na transmissão da mensagem. Ajudam e ajudam muito bem, atenção. Os nossos ouvidos adoram as histórias que Sam The Kid nos conta através das palavras que o próprio esconde por de baixo da sua pele. Mas Sam tem talento, genialidade e musicalidade suficiente para contar uma história sem abrir a boca.

Em Beats Vol.1 não há uma única rima, mas nem por isso a narração da história não triunfa. Sam habilitou-se, então, a contar uma das mais belas histórias de amor sem nunca ter juntado letras e palavras. Este álbum é especial porque Sam convida o ouvinte a entrar no álbum, a fazer parte dele. Como não há propriamente uma narração sólida e literal, apalavrada e poética – existe apenas batida –, é o ouvinte que, através das suas próprias sensações, dá vida ao à música. Sam The Kid, através de um loop musical constante, faz com que o ouvinte viva a sua própria história de amor – que é real e que existe fora do álbum – no interior daquelas 17 faixas.

Em Beats Vol1. Sam, com a ajuda do seu sampler MPC 2000, recicla, por exemplo, restos de conversas telefónicas e excertos de filmes pornográficos. E Sam mistura, mistura e mistura. E Sam sampla, sampla e sampla. Sam não consegue parar. E Sam cria, cria e cria. E Sam criou algo maravilhoso. A beleza deste trabalho reside no facto de Sam não se limitar a samplar êxitos soul dos anos 70’ (já aí vamos…); Sam sampla a sua própria existência. Sam sampla a sua própria memória.

O hip-hop é dos ecossistemas musicais mais criativos devido aos processos de reciclagem que os intervenientes optam por realizar. Cabe tanta música no hip-hop. Coube tanta música neste pedaço de arte de Samuel Mira. Em Beats Vol1. Sam conseguiu dar uma segunda vida a faixas como, por exemplo, “Just To Be Close To You” dos Commodores na «sua» “Beleza”. Também na «sua» “Eternamente Hoje” incluiu a “Only When I’m Dreaming” de Minnie Riperton. Podemos também atentar na “I Be Blowin” dos De La Soul, presente na faixa “Eu e Tu”. Sam, como bom filho do hip-hop que é, reciclou em quase todas as faixas. O resultado final foi magnífico.

Quando nos deparamos com um álbum de instrumentais, acaba por ser inglório (tentar) comentar a musicalidade de cada faixa. Por não haver uma letra condutora, os nossos sentidos desprendem-se, ficam livres e leves. Cada um sente o que quer sentir, o que pode sentir. Daí que, mais uma vez, quem acaba por dar «letra» ao álbum é a nossa própria vida, representada pelos nossos pensamentos e sentimentos.

Aproveitarei a conclusão para fazer referência a um aspeto fundamental deste projeto, que se resume aos títulos das canções. As histórias de amor seguem, na maioria dos casos, um padrão muito próprio. As pessoas conhecem-se. E, subitamente, sentem-se atraídas por qualquer razão. A sedução só vem depois. A dada altura, a atração inicial transforma-se num sentimento de pertença. Não queremos largar a pessoa. O tempo parou, o passado desapareceu, o futuro fica para depois. Apenas o presente importa.

Da primeira faixa (“Beleza”) até à última (“O Amor Não Tem Fim”), passamos por todas as fases desse processo que é o amor.

Pelo meio, vivemos tudo. Sentimos tudo.