Eumir Deodato é um nome incontornável da sua e das gerações seguintes. Continua a ser uma referência da Bossa Nova, do Samba Jazz e de um estilo sem nome, mas que é só seu. Tudo começou mais seriamente com Prelude. Tudo começou misturando música, filosofia, literatura e génio.

A nossa cabeça é uma fonte de associações inesgotável. Espaço de fertilidade absoluta, imagens e sons fundem-se constantemente num cosmos onde todas as ligações são possíveis e desejáveis. É um extraordinário exercício, esse de pular de referência em referência, uma prova de estafetas mentais em que saímos sempre vencedores.

Brinquemos, então: o ponto de partida é a capa de Prelude, o disco que Eumir Deodato gravou em 1972 nos famosos Van Gelder Studios. Observando a capa do álbum, a imagem sombria da árvore projetada num muro de pedra em contraste com uma forte tonalidade verde transfere-se, de imediato, para A Casa Verde, o conhecido romance de Vargas Llosa, e como se não bastasse, ao pousarmos a agulha na primeira faixa da grande rodela negra, é Richard Strauss que se coloca à nossa frente com o seu “Also Sprach Zarathustra”, entrando também, por razões de novo literárias, o livro de Friedrich Nietzsche na contenda, assim como a odisseia espacial de Stanley Kubrick baseada no conto “The Sentinel”, de Arthur C. Clark. Se conseguiu acompanhar-nos até aqui, saiba que ainda poderemos passar o testemunho (é uma prova de atletismo mental, não se esqueça) a Milton Nascimento e ao seu seminal Sentinela, disco com contornos bem diferentes daquele que gravou como seu primeiro longa duração, em que participava, precisamente, Eumir Deodato. Assim, feita esta última parte do sinuoso e estranho percurso, voltamos de novo a Prelude, o ponto de partida deste caminho circular. Resta perceber a razão de tudo isto: foi o que pensámos quando, de olhos cerrados e mente aberta, ouvimos o disco de Eumir Deodato pela enésima vez. Nisto e ainda na estrondosa qualidade musical que nele reside. E sobre esse assunto, agora já de olhos bem abertos, avancemos então para algumas considerações a propósito.

O menino génio da bossa nova resolveu, em 1972, entrar no mundo do groove mais dançante, mais jazzístico e clássico ao mesmo tempo. A sua bossa precisava de qualquer coisa nova para saltar para outro patamar. A black music estava ao seu lado, uma vez que foi nos Estados Unidos que começou a trilhar esse novo caminho, ao trabalhar com músicos como Wes Montgomery, Stanley Turrentine, George Benson, Paul Desmond e, claro, Tom Jobim. A “Big Apple” fervilhava como nunca, e Eumir Deodato ia começando a fazer a festa juntamente com outros brasileiros de monta, como Marcos Valle, Luiz Bonfá e Astrud Gilberto. Em breve, o carioca foi convidado para gravar na renomada CTI. Assim nasceu Prelude. O disco é, também ele, uma enorme viagem. Começa com o célebre arranjo funk de “Also Sprach Zarathustra”, o poema sinfónico que Strauss deu ao mundo em finais do século XIX. Insuflando-o de criatividade e modernidade, Eumir Deodato volta a fazer uma partida aos clássicos, mexendo em “Prelude To The Afternoon Of a Faun”, de Claude Debussy. E como não há duas sem três, subverteu ainda “Baubles, Bangles andBeads”, o popular standard americano da década de 50. As outras três composições do disco são da autoria de Eumir Deodato e integram-se perfeitamente nos arranjos arrojados das anteriores. “Spirit of Summer”, “Carly & Carole” e “September 13” (esta última com a ajuda de Billy Cobham) são igualmente ótimas e conferem ao álbum uma unidade de som e feeling extraordinárias.

É um disco de exceção. Um disco de músicos excecionais. Um disco excepcionalmente inspirado. A par dos pianos acústico e elétrico (sim, o mítico Fender Rhodes ouve-se por aqui) comandados pelos dedos precisos de Deodato, Prelude conta ainda com uma impressionante legião de estrelas do jazz. Tome nota de algumas: Ron Carter, Stanley Clarke, Ray Barretto, Billy Cobham, Hubert Laws e Airto Moreira. É preciso mais? Ouvir Prelude 46 anos depois do seu nascimento é uma obrigação e um prazer. E se nunca Prelude lhe passou pelos ouvidos, não é difícil imaginar que, ouvindo-o, não queira ficar por aqui. Deodato 2 estará, nesse caso, à sua espera, pronto a ser consumido com idêntico fervor. And so on, and so on até não ter mais dúvidas de que Eumir Deodato é um nome incontornável da música com M maiúsculo.