Um disco tão áspero e violento como frágil e sonhador. O éter e o ácido do shoegaze levados ao seu doentio limite.
A pop tem horror ao vazio. Quando os Smiths acabaram, tinha que surgir qualquer coisa e depressa. A resposta do norte de Inglaterra foi a loucura dançante de Madchester. O sul foi mais introspectivo, oferecendo o onírico e melancólico shoegaze.
Ninguém faz uma revolução a olhar para os sapatos, pensava-se. Mas foi exactamente isso que os My Bloody Valentine (MBV) fizeram com o seu primeiro disco Isn’t Anything. Uma miríade de bandas introvertidas surgiriam na sua peugada (Ride, Slowdive, Lush). Nunca houve uma movida mais anti-movida do que o absorto shoegaze.
É claro que os MBV não inventaram a pólvora. Já os avós Velvet enxertavam melodia com ruído, deixando muitos ilustres sucessores (Sonic Youth, Dinosaur Jr., Jesus and Mary Chain). E já os Cocteau Twins faziam uma pop etérea e sonhadora. A originalidade dos MBV está em reunir estas duas tradições, nascendo assim uma pop agressiva e celestial ao mesmo tempo. Anjos cortando as asas no jardim do Éden.
Com a aclamação crítica do primeiro álbum, os MBV sentiram-se pressionados para fazer um sucessor à altura, acordando assim um monstro: o perfeccionismo patológico de Kevin Shields. Loveless demorou dois anos, 19 estúdios e meio milhão de dólares a ser feito, quase levando a Creation Records à falência. Mas valeu bem a pena todos os milímetros de exaspero provocados: Loveless é uma absoluta obra-prima, para muitos o melhor disco da sua década.
As melodias bonitas e delicadas de Loveless são soterradas debaixo de uma avalanche de ruído, reverberação e feedback. Através do uso quase constante da barra de tremolo, as notas da guitarra ondulam para cima e para baixo, estando sempre ligeiramente fora de tom, como um walkman com as pilhas no fim. O efeito é psicotrópico, distorcendo a nossa percepção da realidade, até tudo parecer um sonho. O neo-psicadelismo dos MBV é, porém, inteiramente original, revisitando a metáfora da alucinação através de texturas nunca exploradas nos anos 60.
A estranheza de Loveless decorre também do próprio processo de mistura, onde se salienta a parede de ruído das guitarras à custa de tudo o resto. As vozes suaves de Shields e de Butcher são, assim, apenas mais uma textura, um chamamento longínquo e irreal. Fruir Loveless é, pois, uma operação de resgate nos escombros, onde só depois de removermos metros e metros de distorção conseguimos, por fim, salvar a melodia mais frágil do mundo.
O típico shoegazer vive no quarto de noite e de dia, só saindo para ir comprar tabaco à bomba de gasolina e erva ao amigo dealer. No amontoado de maços vazios e sweatshirts sujas que se estende pelo chão do seu quarto, o difícil mesmo é achar os seus LPs. Mas até nisso Loveless é amigo: a sua capa rosa-choque é sempre a primeira a emergir. É rodá-lo no gira-discos até tudo ser torpor outra vez.
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