terça-feira, 23 de julho de 2024

Discografias Comentadas: Death

 


Na semana que se inicia neste domingo, traremos uma programação especial no blog, totalmente dedicada ao death metal. Isso se dará em lembrança aos 10 anos da morte de Chuck Schuldiner (Death, Control Denied, Voodoocult), ocorrida no dia 13 de dezembro de 2001, e em homenagem à sua grandiosa e influente obra, que estabeleceu as fundações daquilo que conhecemos como death metal e expandiu suas possibilidades ao máximo, reunindo um rol de grandes músicos a fim de expressar sua musicalidade ao longo dos anos.
Nada mais normal que iniciar essa justa homenagem comentando a discografia daquela que foi a banda à qual Chuck dedicou sua vida, ferramenta principal da expressão de seu talento, lançando álbuns paradigmáticos que indicaram novos caminhos a serem explorados e expandiram fronteiras rumo ao extremismo musical, tanto em termos de peso e agressividade quanto em proeficiência técnica. De Scream Bloody Gore (1987) a The Sound of Perseverance (1998), a carreira pode ter sido curta, mas demonstrou crescimento e maturidade cada vez maiores a cada lançamento, garantindo o respeito e a admiração do público e da própria classe musical, que seguidamente exalta as qualidades desse guitarrista, vocalista e compositor  que nos deixou cedo demais.
A primeira formação: Frederick “Rick Rozz” DeLillo, Barney “Kam” Lee e Chuck Schuldiner
O Death iniciou suas atividades com o nome de Mantas, em 1983, na cidade de Orlando (Flórida), onde Chuck residia desde que tinha um ano de idade. A formação original, que incluía seus amigos Frederick “Rick Rozz” DeLillo (guitarra) e Barney “Kam” Lee (bateria e vocal), chegou a gravar algumas demo tapes, mas não se revelaria duradoura, uma constante na carreira do grupo, cujas rédeas sempre pertenceram a Schuldiner. Entre uma mudança e outra, incluindo a troca do nome e uma relocação mal sucedida para a Califórnia, além de uma breve passagem de Chuck pela banda canadense Slaughter, o Death começou a criar burburinho no underground, que culminaria com a assinatura de um contrato com a Combat Records.
De volta à Califórnia e tendo como único parceiro o baterista Chris Reifert, Schuldiner registrou vocais, baixo e todas as guitarras no debut Scream Bloody Gore, lançado em maio de 1987, apresentando uma sonoridade que já se delineava em lançamentos anteriores, como Seven Churches (Possessed), Darkness Descends (Dark Angel), Pleasure to Kill (Kreator), Morbid Visions (Sepultura) e Morbid Tales (Celtic Frost), mas que tomou contornos bem definidos através desse álbum, que se transformou em referência para seus seguidores. É aqui que começa nossa história…
Scream Bloody Gore [1987]
O heavy metal já havia, antes de 1987, dado demonstrações de que poderia ir cada vez mais fundo no extremismo, mesclando letras e imagem condizentes com uma sonoridade pouco acessível aos desacostumados com guitarras estridentes, bateria veloz e vocais que mais se assemelhavam a urros e vociferações do que a um canto tradicional. Entretanto, nenhum álbum anterior a Scream Bloody Gore uniu com tanta maestria as características que se tornariam referência para todas as bandas de death metal posteriores, reforçando o título atribuído por muitos a Chuck Schuldiner como “pai” do death metal. Tal rótulo pode ser discutido, mas o fato é que, através de seu track list, o disco demonstrou a absorção das influências de seu criador transformadas em algo completamente novo, único e visionário, cunhando um clássico instantâneo. Desde a abertura com “Infernal Death”, revelando pela primeira vez os vocais guturais de Chuck e seus riffs endiabrados, até a finalização com a atroz faixa-título, na qual Chris Reifert espanca seu kit com violentas viradas, o álbum é pura intensidade. Para combinar com o massacre sonoro, letras com temática baseada em filmes de horror, em especial as brutais produções italianas realizadas durante os anos 80. Em Scream Bloody Gore encontram-se alguns clássicos que seriam, mais que eternizados pelo próprio grupo, fonte de inspiração a tantos outros por vir, como a magnífica “Zombie Ritual”, que inclui em sua introdução uma bela harmonização de guitarras solo, algo que Chuck faria diversas vezes no decorrer de sua carreira e se tornaria uma característica do Death. Além disso, essa faixa é um exemplo de que uma música pode ser brutal e ao mesmo tempo cativante, contando com um refrão de fácil assimilação. Chris Reifert pode não ser um baterista de apurada técnica, mas esbanja ousadia e urgência em canções como as velozes “Denial of Life” e “Mutilation”, enquanto Chuck executa riffs cortantes e usa o baixo como acompanhante das guitarras, seguindo suas linhas. “Sacrificial” e “Regurgitated Guts” trazem andamentos mais cadenciados e demonstram a versatilidade do mentor do grupo, enquanto “Baptized in Blood” expõe suas aptidões vocais para o mais cavernoso gutural. Dotada de uma introdução calcada em contagiantes riffs de guitarra, “Torn to Pieces” é destaque em um álbum que esbanja qualidade em toda sua extensão, e mais uma demonstração de que o death metal é capaz de oferecer canções memoráveis e viciantes. Prova de que, apesar de datada, a produção de Scream Bloody Gore (realizada por Randy Burns) é satisfatória, é a fantástica “Evil Dead”, cuja memorável introdução revela-se hipnótica e mostra o nascente talento de Chuck não apenas como construtor de ótimos riffs, mas de solos inesquecíveis. A formação que registrou o disco não duraria, mas a qualidade e o ineditismo das músicas registradas em Scream Bloody Gore se revelariam eternos. Como curiosidade, vale citar que o guitarrista John Hand chegou a ser creditado na contracapa do álbum, mesmo sem ter tocado sequer uma nota. No fim das contas, o músico acabou por não realizar nenhuma apresentação ao lado do grupo.

Leprosy [1988]

A dupla formada com Chris Reifert não se revelou duradoura, e Chuck acabaria por retornar à Flórida e unir-se a seu antigo companheiro, o guitarrista Rick Rozz, e mais dois membros de sua banda, o Massacre: Bill Andrews (bateria) e Terry Butler (baixo). O estilo menos urgente de Andrews, dono de uma pegada mais thrash, acabaria por ajudar a proporcionar uma leve mudança no direcionamento de Leprosy, um álbum menos extremo, contudo mais pesado que Scream Bloody Gore. Além disso, as canções compostas por Chuck (algumas com o auxílio de Rick Rozz) são melhor trabalhadas e menos lineares, contando com diversas mudanças de andamento. Um claro exemplo disso é a faixa-título, que abre o disco esbanjando peso e alternando segmentos cadenciados e velozes. “Born Dead” é mais próxima das faixas registradas no álbum anterior, e ilustra bem a diferença entre as habilidades de Chuck e Rick nas seis cordas: o primeiro, cada vez mais se revelando um talento nato, criando solos de apurado bom gosto mesmo em meio a todo o extremismo sonoro, enquanto Rick sola mais primitiva e instintivamente, abusando das alavancadas, influenciado pelo Slayer de Reign in Blood (1986). “Forgotten Past”, conduzida por riffs cavalgados, é outra que expõe com clareza a superioridade de Chuck com o instrumento, fato que resultaria no afastamento de Rick do grupo por inabilidade técnica, cerceando a sempre crescente evolução instrumental do material apresentado pelo líder. No entanto, em Leprosy essa realidade não chega a comprometer o resultado. “Left to Die” é outra que remete às conduções mais retas de Scream Bloody Gore, enquanto “Primitive Ways” é a maior contribuição de Rick para o disco. Única faixa do álbum a ser executada constantemente até o final da carreira do grupo, “Pull the Plug” é perfeito exemplo da rápida evolução de Chuck como compositor, dando origem a canções cada vez mais ricas estruturalmente, mas que não deixavam de ser cativantes. Sua letra também demonstra que, apesar da linha horror e gore ser mantida, começava a se afastar da fantasia e apontar para tópicos mais reais, versando sobre a eutanásia. A esse clássico segue-se outro de quase tão grande magnitude, uma avalanche de bons riffs permeada por andamentos thrash chamada “Open Casket”. “Choke on It” fecha o álbum em alta e evidencia o baixo, bastante destacado na mixagem e novamente executado por Chuck, apesar do crédito a Terry Butler. Faz-se  necessário citar que Leprosy foi o primeiro álbum do Death a ser gravado no estúdio Morrisound, em Tampa (Flórida), que se tornaria em pouco tempo uma espécie de Meca para os grupos norte-americanos de death metal. A produção, administrada por Dan Johnson, deu corpo e peso às músicas, pecando apenas pelo excessivo volume atribuído à caixa da bateria, se sobrepondo aos outros instrumentos, falha na mixagem. Contudo, detalhe algum é capaz de tirar de Leprosy a pecha de clássico instantâneo e um dos mais importantes álbuns de death metal já lançados.

Death na estrada em 1989: Terry Butler, Paul Masvidal,
Eric Greif (empresário), Bill Andrews e Chuck

Spiritual Healing [1990]

Se Leprosy já havia representado uma significativa evolução em relação a Scream Bloody Gore, evidenciando uma construção mais esmerada das canções que formam seu track list, em Spiritual Healing o passo dado seria ainda maior. Cada vez mais desenvolvendo ideias que transcendiam o lugar comum, Chuck obrigou-se a abrir mão dos serviços de Rick Rozz. Após uma passagem do guitarrista Paul Masvidal (Cynic) durante a turnê para Leprosy, o Death recebeu a adição de James Murphy. Instrumentista tão competente quanto o líder do grupo, James ajudou a possibilitar a concretização da música que nascia na mente de Chuck, dotada de considerável evolução técnica em relação aos álbuns anteriores, algo que fica bastante evidente na estupenda sequência de solos presente em “Low Life”, na qual James e Chuck trabalham tal quais duplas veteranas das seis cordas. Essa evolução não se operou apenas no aspecto técnico, visto que, desde sua capa (a última assinada pelo antológico ilustrador Edward J. Repka para o Death), fica claro que a temática mais mórbida estava sendo deixada para trás, dando lugar a temáticas baseadas na visão crítica de Chuck a respeito de diversos problemas e dilemas recorrentes na sociedade, como o uso de drogas, a manipulação genética, o aborto e o comércio da fé. Musicalmente, Spiritual Healing soa mais polido que Leprosy, aproximando-se estruturalmente do thrash metal em diversos momentos, como na ponte para o refrão presente em “Altering the Future”, outro claro exemplo da capacidade de James e Chuck, que promovem mudanças de andamento entremeadas por ótimos solos com facilidade. Os vocais de Chuck, menos “cavernosos”, continuam soando suficientemente agressivos, mas se apresentam mais inteligíveis, valorizando o conteúdo lírico. Dessa vez, Terry Butler realmente comandou o baixo, e talvez por isso ele não soe tão evidente como nos antecessores, nos quais o “patrão” era o encarregado dos graves. Bill Andrews continua um baterista sem tanto brilho, mas conduz suficientemente bem as nada monótonas canções, ricas em andamentos distintos. Provável exemplo maior da crescente evolução do Death é a faixa-título, música com quase oito minutos de duração, recheada de excitantes passagens bem trabalhadas e bom gosto na escolha dos timbres, além da saudável adição de algumas linhas de teclado, tocadas pelo empresário da banda, Eric Greif. De resto, todas as faixas que formam Spiritual Healing são uma demonstração de quão prolífico na criação de riffs, licks e solos Chuck estava, fosse em faixas como as rápidas “Living Monstrosity” e “Defensive Personalities”, a cadenciadamente triturante “Genetic Reconstruction”, ou nas variadas “Within the Mind” e “Killing Spree”, que já adiantavam uma ideia do que estava por vir um ano depois.

Human [1991]

O tempo acabaria por mostrar que Spiritual Healing, apesar de ter representado uma evolução digna de nota, constituiu um álbum de transição. Em Human é que foi operada a mudança que transformaria de vez a imagem do Death para a que temos hoje em dia, de mais que um pioneiro, um desafiador de limites. Após a partida de James Murphy e, mais especialmente, graves desentendimentos com Terry Butler e Bill Andrews, Chuck decidiu levar cada vez mais o Death como um projeto solo, colocado em prática através da parceria com diversos músicos tanto em estúdio quanto ao vivo conforme as possibilidades e desejos de cada momento. Em Human, o guitarrista e vocalista uniu-se ao antigo conhecido Paul Masvidal, que trouxe consigo o baterista Sean Reinert, também de sua banda, o Cynic. Para o baixo veio Steve DiGiorgio, fundador do grupo californiano de thrash metal Sadus, que também havia tido uma rápida passagem pelo Autopsy, grupo capitaneado pelo baterista de Scream Bloody Gore, Chris Reifert. Desde o início em fade in do álbum, com “Flattening of Emotions”, através dos pés e das mãos de Sean Reinert, fica explícita a qualidade dos instrumentistas com os quais Chuck trabalhou nessa empreitada. Mais do que isso: a complexidade do material por ele desenvolvido está totalmente alinhada com essa evolução, ajudando a pavimentar o caminho para um death metal de grande inclinação técnica, via que já estava sendo percorrida sem o mesmo reconhecimento pelos vizinhos do Atheist (também da Flórida) e pelo próprio Cynic de Masvidal e Reinert, que ainda não havia lançado seu debut. Quem pensa que a proeficiência instrumental demonstrada em Human cresceu às custas do sacrifício do extremismo definitivamente se engana. Uma breve escutada em canções carregadas de velocidade e peso como “Together As One” e “See Through Dreams”, conduzidas com precisão por Sean Reinert e pontuadas pelos cortantes riffs da dupla de guitarristas que, para muitos, é a melhor que o Death já possuiu, basta para desmistificar essa ideia. A complexidade estrutural de faixas como a pungente “Suicide Machine”, “Secret Face” e “Vacant Planets”, dotadas em certos momentos até de inclinações jazzísticas, só é comparável à sua qualidade como composições e à brilhante execução engendrada pelo quarteto. Coroando a nova fase, chegou a ser rodado um videoclipe para a ótima “Lack of Comprehension”, na qual fica mais evidente a sonoridade fretless (sem trastes) de Steve DiGiorgio. O vídeo foi filmado já com a presença do baixista Skott Carino, que chegou a registrar algumas linhas na viajante instrumental “Cosmic Sea”, música de inspiração um tanto psicodélico-progressiva, na qual o instrumento recebe mais atenção. Inclusive, há de se destacar que o único ponto fraco de Human é a precária mixagem do baixo, perdida na maior parte do track list, exceção feita às duas últimas canções citadas. Bem recebido na época e tido como mais um sinal do pioneirismo do Death, o álbum revelou-se um grande sucesso dentro do gênero, e é hoje em dia seguidamente apontado como um dos discos mais vendidos a nível norte-americano e mundial em se tratando de death metal.

Death em 1991: Sean Reinert, Paul Masvidal, Skott Carino e Chuck

Individual Thought Patterns [1993]

O time montado para a gravação de Human já era suficientemente de tirar o fôlego, mas a formação apresentada em Individual Thought Patterns superou até as expectativas mais extremadas. Para o baixo (dessa vez muito mais evidente no decorrer do disco) houve o retorno de Steve DiGiorgio, que se revelaria um dos mais prolíficos parceiros de Chuck durante sua carreira. O “relógio atômico” Gene Hoglan, egresso do Dark Angel, grupo thrash metal de Los Angeles, tomou conta das baquetas, mostrando-se tão ou mais fabuloso que o já excelente Sean Reinert. A segunda guitarra ficou a cargo de uma das maiores revelações do instrumento surgidas na segunda metade dos anos 80, o sueco Andy LaRocque, escudeiro do vocalista dinamarquês King Diamond na banda que leva seu nome. O poder de fogo dessa formação fica evidente desde o início, com a aceleradíssima “Overactive Imagination”, repleta de bases intrincadas que dão suporte às pouco previsíveis linhas vocais criadas por Chuck, entoando letras de nível ainda mais elevado que as de seus antecessores. Aliás, bases intrincadas e riffs atípicos é o que não falta no track list de Individual Thought Patterns, além do fato dos sempre excelentes solos de Chuck receberem um concorrente à altura através das mãos de Andy LaRocque, algo muito bem exemplificado em “In Human Form”, rica em interação. A evidência do absurdo trabalho realizado por Steve DiGiorgio se apresenta como em raros outros momentos em “Jealousy”, onde seus dedos percorrem o braço de seu baixo fretless de maneira a servir muito mais do que como um mero acompanhante, mas executando linhas distintas e destacadas. Gene Hoglan não fica para trás, recheando suas conduções de infinitas quebradeiras, adicionando cor e criatividade em músicas que se tornam muito mais excitantes graças à sua presença, como a faixa-título e “Trapped in a Corner”, na qual seus pratos temperam a canção de maneira marcante. “Nothing Is Everything” é outra que, assim como “Overactive Imagination”, une peso e velocidade à incrível habilidade técnica dos músicos, enquanto “Mentally Blind” traz uma bem vinda pegada thrash através dos riffs que brotam das mãos de Chuck e Andy. “Destiny”, dona de uma climática introdução ao violão, e “Out of Touch”, pontuada por linhas de teclado, exemplificam a sempre crescente evolução do Death e a absorção de influências diversas, inseridas na música do grupo de maneira a não sacrificar sua identidade. Chuck guardou o melhor para o final: a última faixa, “The Philosopher”, não apenas é o segundo registro da banda a ter recebido um videoclipe, mas provavelmente a mais conhecida em todo seu catálogo. Tempos complexos e estruturas quebradas já haviam se tornado comuns nos track lists do Death até então, mas é em “The Philosopher” que o grupo uniu essas características de maneira a construir, em meio a toda sua inventividade, melodias tão criativas e cativantes, sem falar na boa performance vocal de Chuck. Junto com HumanIndividual Thought Patterns é provavelmente a melhor introdução que o leigo pode ter à discografia do Death, pois, apesar do enorme desenvolvimento, ainda é o death metal que marca a mais forte presença em suas faixas.

Symbolic [1995]

“Death metal, black metal, speed metal, thrash metal. Tire a primeira palavra de todas elas e deixe uma só: metal!” Essa opinião de Chuck facilmente encontra paralelo em sua arte, e é em Symbolic que fica mais evidente a criação de uma música que transcende rótulos, dona de particularidades únicas. Os pouco conhecidos Bobby Koelble (guitarra) e Kelly Conlon (baixo) uniram-se a Chuck e Gene Hoglan na criação de um disco ambicioso, extremamente técnico e bem estruturado, contando com faixas mais longas que o habitual, mas de maneira alguma soando como meros exercícios de masturbação musical. Um dos mais marcantes riffs criados por Chuck abre a esplendorosa faixa-título, uma das favoritas dos fãs, que sugere os motivos para que muitos tivessem passado a rotular o Death como “death metal progressivo”. Não concordo com tal pecha, afinal, mesmo a associação com o progressivo, gênero que deveria primar pela ousadia e ausência de limites, é pouca para definir o que se encontra em músicas como “Empty Words” e a longa “Perennial Quest” (ambas incluindo passagens acústicas), espetáculos de criatividade surgidas da mente de uma pessoa que faz por merecer a alcunha de gênio, e postas em prática por um grupo de músicos de capacidade inquestionável. O som límpido extraído da bateria de Gene, introduzindo “Zero Tolerance”, é exemplo do alto nível alcançado pela produção de Jim Morris e Chuck, mais “na cara” do que nunca, equilibrando perfeitamente a equalização. Sobre a bateria, também é necessário reforçar a magnífica performance de Hoglan, provavelmente a mais eficiente e criativa de toda sua carreira. Além de sempre encontrar espaços para inserir pequenos toques pessoais que emprestam vivacidade à música sem perder precisão, Gene também é extremamente sólido, como na pesada “1.000 Eyes”. A “cavalice” come solta em “Misanthrope” e “Sacred Serenity”, que evidenciam o bom trabalho realizado por Kelly Conlon, subtituindo aquele que é, para mim, o melhor e mais criativo baixista das vertentes mais extremas do metal, Steve DiGiorgio. Bobby Koelble também faz bonito, como na introdução em dueto com Chuck na fantástica “Without Judgement”, que também conta com momentos solo de beleza única. “Crystal Mountain” traz a velha pegada thrash unida a melodias  e solos que são marca registrada de Chuck, remetendo ao início da carreira do grupo. Preferido de muitos admiradores, Symbolic representou um oásis de qualidade em uma época na qual o heavy metal encontrava-se em queda em todo o mundo, ocupando cada vez menos espaço na mídia mainstream. Um disco ousado, que explorou limites sem soar inacessível, e que deveria ser conhecido por mais pessoas a fim de compreender as possibilidades de um gênero que muitas vezes é tido como fechado, mas que pôde se libertar de quaisquer amarras criativas através das mãos de um eterno pioneiro como Chuck Schuldiner.

Formação que registrou Symbolic: Gene Hoglan, Kelly Conlon, Chuck e Bobby Koelble

The Sound of Perseverance [1998]

Afastando-se ainda mais de rótulos, o derradeiro registro do Death traz, além de mais uma reformulação em suas fileiras, uma performance vocal de Chuck bastante diferente se comparada à dos primeiros registros. Em Symbolic seu gutural já havia se tornado mais ríspido e agudo, mas em The Sound of Perseverance essas características foram mais evidenciadas, para desagrado de alguns. Na época em que o disco foi lançado, Chuck já estava trabalhando a fim de lançar um álbum de seu novo grupo, o Control Denied, dotado de um approach mais próximo ao heavy metal tradicional, mas ainda desafiador, e isso definitivamente acabou influenciando massivamente a música contida em The Sound of Perseverance. Ao lado do líder estavam três músicos até então pouco conhecidos: Shannon Hamm (guitarra), Scott Clendenin (baixo) e Richard Christy (bateria), esse último se transformando posteriormente em uma referência no instrumento, não devendo em nada para seus antecessores, Sean Reinert e Gene Hoglan. O título do disco, “o som da perseverança”, é extremamente adequado, dadas as dificuldades e reveses ocorridos com o grupo no decorrer dos anos, incluindo as constantes mudanças de formação, desentendimentos com alguns músicos e críticas advindas da imprensa musical, cuja resposta sempre foi traduzida em música de qualidade, e aqui não é diferente. Apesar de não ser tão bem produzido quanto Symbolic (sua sonoridade é um tanto “seca”), a atenção dada aos detalhes em The Sound of Perseverance é extrema, e parece haver um latente desejo de provar a capacidade dos músicos. A avassaladora introdução da rápida “Scavenger of Human Sorrow” feita na bateria, somada às eficientes costuras guitarrísticas efetuadas por Chuck e Shannon, são demonstração disso, cunhando um clássico instantâneo. “Bite the Pain” inicia de maneira mais calma, mas depois descamba para uma orgia das seis cordas, na qual a repetição quase inexiste. Muito aclamada é a cadenciada “Spirit Crusher”, que deixa em bastante evidência a sonoridade palhetada de Scott Clendenin e a prova de que Chuck sempre escolheu seus asseclas pela habilidade e não pelo renome. Seu refrão marcante é mais uma amostra de que em momento algum de sua carreira o mentor do grupo perdeu a mão para compor canções intrincadas porém cativantes. “Story to Tell” traz bases muitas vezes simples, mas valorizadas pela peculiar execução e entremeadas por guitarras solo de muito bom gosto. Um pequeno épico, “Flesh and the Power It Holds” aponta o caminho que seria seguido pelo Control Denied, com músicas longas e extremamente variadas, suscitando mais uma vez uma aproximação do Death com as sonoridades progressivas. Se em álbuns anteriores Chuck já havia experimentado com instrumentos acústicos, em The Sound of Perseverance há uma canção instrumental, “A Moment of Clarity”, que mescla perfeitamente o violão às guitarras, solando com uma sensibilidade atípica para o gênero. Em resposta, “To Forgive Is to Suffer” é um convite a bater cabeça, puro heavy metal lapidado pelas mãos de quatro músicos de habilidade indiscutível. “A Moment of Clarity” é outra faixa de proporções épicas, que faz pensar em como Chuck sempre conseguiu executar suas complicadas linhas de guitarra ao mesmo tempo em que cantava de maneira atípica, poucas vezes simplesmente acompanhando seus próprios riffs, algo que facilitaria em muito seu trabalho. Para encerrar o o disco, foi registrada uma fiel versão (mas com solos modificados), no mínimo tão boa quanto a original, de “Painkiller”, dos ingleses do Judas Priest. Além de esforçar-se para soar de maneira análoga a Rob, abusando de agudos, Chuck finaliza a última canção do último álbum da carreira do Death com uma pequena amostra de sua voz natural.

Chuck Schuldiner ao vivo

No ano seguinte, Chuck, ao lado de Richard, Shannon e seu velho amigo Steve DiGiorgio, além de um vocalista encarregado de liberar o guitarrista dessa função, Tim Aymar, lançaria com o Control Denied The Fragile Art of Existence, cuja sonoridade já havia sido apresentada em diversos momentos de The Sound of Perseverance. Outro magnífico álbum para reforçar um catálogo que sempre transbordou qualidade. Na época em que o registro desse disco estava sendo concluído, Chuck começou a queixar-se de fortes dores na porção superior de seu pescoço. Após consultar-se com especialistas, descobriu-se que as dores eram provenientes da presença de um neuroglioma, um tipo de tumor que afeta o sistema nervoso central. A batalha contra o câncer durou pouco mais de dois anos, e envolveu um grande esforço tanto de músicos de dentro da comunidade heavy metal quanto de artistas mais populares para arrecadar fundos a fim de custear o caríssimo tratamento, nada ajudado pelo deficiente sistema de saúde pública norte-americano.

Infelizmente, nem todos esses esforços foram capazes de proporcionar uma cura para Chuck, que, fragilizado tanto pela doença quanto pela medicação a fim de combatê-la, acabou falecendo no dia 13 de dezembro de 2001, com apenas 34 anos de idade. Sua carreira pode ter sido curta, mas a importância e a extensão da influência de sua obra transcendem barreiras de tempo e gênero musical, assim como sua música, sempre desafiando fórmulas pré-estabelecidas e evoluindo incansavelmente. As demonstrações de respeito e auxílio realizadas após a descoberta de sua doença, além da consternação que atingiu músicos das mais diversas localidades quando de sua morte, são mais uma prova de que Charles Michael Schuldiner executou um belíssimo trabalho durante sua passagem pela vida. A constante realização de festivais tributo ao redor do mundo e a devoção de seus fãs, muitas vezes pegando em instrumentos inspirados pelo músico, ilustra quão grande e positivo segue seu legado. Chuck Schuldiner é alguém para se chamar de gênio, alguém para se ter como ídolo.

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