Há neste disco qualquer coisa que incomoda e perturba. Talvez seja a sensação da proximidade do fim, ou talvez ainda o cansaço de uma vida que, nas voltas que deu, revelou mais os avessos do que os direitos da existência humana. Parece um último momento, um último suspiro, um derradeiro adeus antes do bater da porta.

Marianne Faithfull foi um ícone dos anos sessenta, mas também um anjo caído do universo desregrado do estrelato pop-rock. Independentemente das múltiplas razões por detrás desse sofrido acontecimento, a verdade é que a menina nascida em Hampstead, Londres, é há muito uma respeitada senhora com idade suficiente para não a revelarmos aqui. No entanto, nem sempre a passagem do tempo se mostra tão cavalheiresca como seria desejável, e o caso de Marianne Faithfull é apenas mais um exemplo do que dizemos. O sofrimento, tanto físico como psicológico, tem abundado na sua vida mais recente, sendo por via de problemas ósseos, como pela morte de vários dos seus bons e verdadeiros amigos. Da soma das duas, é fácil chegar ao resultado da solidão. Apesar de tudo, retemperando-a um pouco destas sofridas matemáticas da vida, há o amor que se sente e que se canta em Negative Capability, título retirado de uma carta de Keats, o último dos grandes poetas românticos do século XIX, tragicamente desaparecido aos 25 anos de idade.

Voltemos ao essencial. Marianne Faithfull rodeou-se de boa e conhecida gente para fazer Negative Capability. Desde logo Rob Ellis, famoso e conhecido produtor, mas também Warren Ellis, o bom barbudo dos Bad Seeds, e o chefe-mor dessas benditas sementes, o mítico Nick Cave. Trio de peso, como facilmente se percebe. Mas, para além de tudo, há Marianne Faithfull e a sua voz. Isso importa, e muito. Como também importa o que essa voz canta, o que neste específico caso quer dizer amor, perda, morte, um de cada vez, todos fundidos, com pesos diferentes, mas todos significativos. O mais recente disco da menina que há muito apareceu naked under leather é um dos mais intensos e belos trabalhos discográficos deste ano de 2018. Não há como negar esta evidência. Se é verdade que a dor existe, também é seguro que há espaço para alguma redenção por via das estranhas leis da nostalgia.

Duas ou três notas sobre canções perfeitas. Elas bastariam para que se considerasse Negative Capability como um dos melhores trabalhos de Marianne Faithfull. A que abre o disco talvez seja o melhor dos exemplos. Trata-se de “Misunderstanding”, poderosa e negra canção que conta com a participação de Ed Harcourt. Talvez seja mesmo o momento mais marcante de todo o álbum. Letra e melodia lindíssimas, voz honesta (“what I am is not a game”, canta Faithfull) e depois há ainda as cordas de Warren Ellis, espécie de sonhos traduzidos em sons. E o coro, terminando com “only you have such allure”. Perfeito! A segunda canção, também a segunda do disco, é “The Gipsy Faery Queen”, tema do mago Nick Cave. O australiano está em todas as notas, em todos os sons e não apenas na voz que acompanha Marianne Faithfull ao longo do tema. Perfeito, mais uma vez! A terceira é “No Moon in Paris”, de novo com participação de Ed Harcourt. Encerra o disco, e uma vez mais a honestidade é desarmante: There’s no moon, no moon in Paris tonight / And it’s lonely, and that’s all I got”. No entanto, a redenção, se assim pudermos chamar, vem com os versos finais, apesar de rodeada da mesma dor fundadora, da mesma solidão agonizante, quando Marianne Faithfull canta, referindo-se à lua, “In Martinique it shines on the sea / But in Paris it usually shines on me”. Dificilmente se poderia acabar este disco de melhor maneira.

No entanto, outras canções (todas, para sermos honestos) merecem óbvio destaque. Mas fiquemos pelas regravações, a começar por “As Tears Go By”, clássico single da dupla Jagger / Richards e primeiro grande momento da carreira da jovem cantora. Corajosa reinterpretação, agora que a voz de Marianne está repleta de peso e gravilha, pouco ou nada sobrando da frescura e limpidez de outros tempos. A segunda é “Witches Song”, retirada do longínquo Broken English (1979), sendo que Marianne Faithfull volta a flirtar com “It’s All Over Now, Baby Blue”, do nobelizado e antigo amor Bob Dylan. Mais três fantásticos momentos!

Negative Capability é um álbum cheio de sabedoria e honesto até à medula. Talvez por isso tenha um certo travo a despedida, embora a própria artista o tenha negado em recentes entrevistas. Assim tenha razão a cantora e nós não. Era bom voltar a ouvi-la. No entanto, e para já, fiquemos com Negative Capability, um dos álbuns do ano de 2018. É mesmo um tesouro, acreditem.