Lebre é um álbum bipolar, que oscila entre a alegria de bailarico e a epopeia sombria. O folclore tuga permanece mas desta vez vestido de prog rock. Gaiteiros de Lisboa meets King Crimson.

Nós, portugueses, temos uma má relação com a nossa música tradicional. Faz-nos lembrar pés descalços, candeeiros de petróleo e sandes de molho; um passado demasiado próximo (o dos nossos avós) para nos sentirmos confortáveis com ele. Quando condescendemos e consumimos música portuguesa, preferimos a que imita na perfeição a lá de fora, cantada em inglês e tudo, “tão boa que até parece estrangeira”. E, contudo, sempre houve bichos orgulhosamente tresmalhados. Poucos, é certo, mas tão obstinados que nunca deixaram a tradição morrer. O principal foi Zeca Afonso, que a partir dos anos 60 reinventa a música tradicional portuguesa com o seu génio criativo.

A partir do Zeca nasceram duas linhagens: uma mais continental (Fausto, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Janita Salomé, Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge); e a outra mais anglófila (Filarmónica Fraude, Banda do Casaco, António Variações, Trovante, Sitiados, Megafone). Os Diabo na Cruz são hoje os herdeiros mais conhecidos desta segunda estirpe, e o seu líder, Jorge Cruz, é o grande ideólogo contemporâneo de uma portugalidade pop (como no passado o foram Pedro Ayres Magalhães e João Aguardela). Misturam música tradicional portuguesa com rock e ambicionam levar a sua estética ao máximo número de pessoas. Têm tido sucesso nesta missão, não porque tenham uma grande máquina de promoção por detrás, mas porque cada concerto seu é um combate que não deixa prisioneiros.

Em Virou! (2009) e Roque Popular (2012), apresentam o seu manifesto sobre o que pode ser uma pop portuguesa no século XXI, mesclando música tradicional portuguesa com um indie rock dançante à Franz Ferdinand. Em Diabo na Cruz, de 2014, têm a coragem de inovar, embrulhando as nossas raízes em kitsch pop, com sintetizadores propositadamente manhosos, e uma inteligente reflexão sobre o campo que há na cidade. E agora, volvidos quatro anos, regressam aos discos com Lebre, que – pela sua imaginação melódica e ousadia criativa – é o melhor disco dos Diabo desde Virou!.

É um álbum bipolar, que oscila entre a alegria de bailarico e a epopeia sombria. Na primeira parte do disco, dominam os Diabo dançantes que já conhecemos tão bem, o das canções de festa da aldeia, de copo de tinto na mão, a apalpar as gaiatas por debaixo das saias. Na segunda parte, a partir de “Terra Ardida”, o disco torna-se denso e sombrio, de uma maneira que nem em Roque Popular tínhamos ouvido. O folclore tuga permanece mas desta vez vestido de prog rock, metade Gaiteiros de Lisboa de Picadilly Circus, metade King Crimson de Celorico da Beira. A mistura de órgãos Hammond, guitarras musculadas vintage e um exército de bombos desenha paisagens épicas e trágicas: montanhas gigantes engolidas pelo fogo, mantos de cadáveres carbonizados, ventos sepulcrais assobiando na noite escura. Nunca os Diabo foram tão imponentes e desolados, tão telúricos e devastados, tão desmedidos e destroçados: a pátria ferida a gemer…

Lebre é o mais conceptual dos discos dos Diabo na Cruz, todo ele unido à volta da seguinte interrogação: será possível num mundo tão globalizado e hiper-virtual como é o contemporâneo encontrarmos algum sítio a que chamemos casa? É possível, sim, senhor. A minha pátria é a pop portuguesa. A minha casa são os Diabo na Cruz.