Uma voz onde todas as atrocidades e alegrias convergem: navios negreiros e fé nos orixás; fome e samba de roda.

88 anos! Esta força da natureza chamada Elza, este vulcão de uma absurda vitalidade, tem 88 anos e voltou com mais um enorme disco. O seu único senão é não ser Mulher do fim do mundo mas só os mais avançados microscópios estéticos conseguem detectar as poucas décimas que os separam. É natural: a vanguarda de músicos paulistas que está por detrás é a mesma, mantendo em Deus é Mulher o projecto de renovação (e subversão) do samba: electrificado, despenteado, amaldiçoado. E a mesma poesia de combate assoma, agora com menos negritude mas com um sublinhado ainda maior na força e autodeterminação da mulher.

E o que é extraordinário é que uma senhora que podia ser avó dos paulistanos que a acompanham se adapta totalmente à heterodoxia da sua estética: das guitarras eléctricas distorcidas às brincadeiras electrónicas, das letras provocatórias aos arranjos sombrios e dissonantes. Que juventude de espírito tem Elza, avó, sim, mas também neta, cozinhando o feijão com arroz para os miúdos ao mesmo tempo que joga ao berlinde com eles.

Se este disco é ancestral e vanguardista, popular e erudito, pagão e profano, africano e europeu, é-o porque Elza é a ponte, capaz de congregar em si todas as contradições do seu Brasil. “Mil nações moldaram minha cara” é, justamente, o primeiro verso do disco, cantado a capella pela voz rouca de Elza.

Uma voz que não tem a amplitude de outrora, confinada agora a pouco mais de uma oitava, mas que mantém uma incrível expressividade – dor, luz, sangue e lava, escorrendo das entranhas da história.

Uma voz onde todas as atrocidades e alegrias convergem.

Navios negreiros e fé nos orixás.

Fome e samba de roda.