segunda-feira, 14 de outubro de 2024

FADOS do FADO...letras de fados

 



A senhora Mouraria

Fernando Farinha / Alberto Correia
Repertório de Fernando Farinha 

A Mouraria deixou de ser cantadeira
Já veste de outra maneira 
Está com aspecto mais novo
Lisboa quis ser sua protetora
E fez dela uma senhora 
Já não é mulher do povo

Fez do passado um segredo
Agora deita-se cedo 
E acorda cedo também
E o fado, seu antigo namorado
Já se sente envergonhado 
Da beleza que ela tem

Lisboa 
Disse adeus à Mouraria
E o fado desde esse dia
Com saudade
Sem saber onde morar
Andou perdido a cantar 
Pela cidade
Agora 
Que o Bairro Alto o prendeu
E que o povo o recebeu 
Em sobressalto
Eu
 peço nesta cantiga
Que Lisboa nunca diga
Um adeus ao Bairro Alto


A Mouraria já não é a rapariga
Boémia, simples e amiga 
De noitadas e de farra
Não quis o velho xaile franjado
Pôs as cantigas de lado
E até vendeu a guitarra

Já não usa tamanquinhas
Não entra no Campainhas 
Nem se dá com o rufia
Por isso, o velho Apolo, saudoso
Morreu triste e desgostoso 
Com pena da Mouraria


A Severa que me diga

Luís Simão / Nóbrega e Sousa
Repertório de Ada de Castro

A Severa que me escreva 
Se gosta da minha voz
Ao fado entreguei tudo 
Tal como o trigo se entrega á mós

A severa que me diga 
Se sou fadista a valer
Quando choro com o que canto 
Posso decerto não o merecer

Fado que és meu, p'ra ti nasci
O próprio berço prendeu-me a ti
Ó meu país mereces mais
Mas sou mais pobre do que os pardais;
Uma guitarra com certo brado
Disse-me um dia; tu és do fado

A Severa que condene 
Este fado que vos dou
Mas eu sou tão pequenina 
Que junto dela, areia sou

Não quero consagração 
Nem nome a letras gravado
Quero ser só uma fadista 
Mulher do povo que canta o fado


A soleira da porta

Carlos Conde / João Maria dos Anjos
Repertório de Daniel Gouveia 

Passei hoje mesmo, à beira
Daquela antiga soleira
Da Travessa dos Quartéis
Que era entrada de uma tasca
Onde o fado, mesmo rasca
Criou nomes e deu leis

Taberna reles, banal 
Mas lá dentro, no quintal
Cheiro a iscas, pão e vinho
Dois varais de traquitana 
O poço, o musgo, a roldana
E em volta, mesas de pinho

Da Baixa à Rua do Cabo 
As tipóias do Zé Nabo
Andavam sempre em despique
E às tantas da madrugada 
Inda o fado em desgarrada
Se ouvia em Campo de Ourique

Um faia antigo e de nome 
Foi lá comigo e mostrou-me
Como sombra do passado
Uma soleira velhinha 
Um quintal de erva daninha
E um tapume abandonado

Não sou do tempo da tasca 
Onde o fado, mesmo rasca
Criou nomes e deu leis
Mas quase chorei, à beira 
Daquela antiga soleira
Da Travessa dos Quartéis

Informação de Francisco Mendes e Daniel Gouveia
Livro *Poetas Populares do Fado-Tradicional*

A letra seguinte, A Soleira da Porta, poderia ser um paradigma de Carlos Conde. 
Repare-se no equilíbrio da descrição, cumprindo as regras do conto, género literário 
bem difícil de nele se atingir a excelência, apesar da aparente simplicidade. 
Não é por ser curto que o conto se torna fácil. 
Pelo contrário, tal como na quadra popular, é pela condensação do efeito de provocar emoções 
no leitor e daí, pela necessidade de uma estrutura rigorosa, que o bom conto se torna raro. 
Ora, todas as qualidades necessárias a um conto irrepreensível estão reunidas nesta letra.

Começa por introduzir o leitor/ouvinte na acção e apresentar o cenário em que ela decorre. 
Passa ao desenvolvimento dessa mesma acção, descrevendo-a como um observador externo. 
A seguir, introduz o elemento de surpresa ao revelar-se testemunha directa num tempo posterior
mas no mesmo cenário, passando da evocação para o tempo real, técnica cinematográfica
por excelência (flash-back). Finalmente, encerra retomando os versos iniciais, em perfeita 
simetria formal declarando uma emoção que, exatamente pelo tom confessional, se transmite 
ao leitor/ouvinte com toda a intensidade. 
É a «chave de ouro» com que um bom conto deve terminar.
A terminologia é deliciosamente adequada ao imaginário fadístico castiço, na vertente 
incensadora dos «tempos que já lá vão», eficaz, objectiva, sem falar de qualidades 
ou sentimentos humanos, salvo quando o «quase chorei» nos alerta para que todos aqueles 
objectos inanimados tinham um altíssimo significado emotivo.
Diríamos que estes são Fados de arquitectura perfeita.




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