Porque é que Funeral é o grande disco da sua década? Pela sua originalidade? Pela sua beleza? Estamos em crer que a resposta é outra: pela primazia quase fascista da emoção, sobrepondo-se a tudo o resto. Comova-se nele.
A segunda metade dos anos 90 foi de má memória para o rock, com o grosseiro nu-metal a dominar as bandas de guitarras. Tudo mudou na viragem do século, quando a rapaziada dos Strokes, Interpol, Libertines e White Stripes não só restituiu autenticidade ao rock, como obrigou o indie a sair das condutas subterrâneas. Esses primeiros anos do novo milénio foram inspiradíssimos mas tinham um desagradável senão: pediam fiado em demasia ao garage e ao pós-punk. Faltava um assomo de originalidade que validasse, de uma vez por todas, o novo rock. Em 2004, esse rasgo chegou por fim. Por ironia do destino, chamaram-lhe Funeral.
Idiossincrasia é então a nossa primeira palavra-chave. Onde os White Stripes são fanaticamente minimalistas, os Arcade Fire tocam tantos instrumentos quanto lhes é possível deitar a mão (violino, xilofone, acordeão, o diabo a sete). Onde os Strokes e os Libertines são mais coolness do que substância, a banda canadiana é apenas a verdade. Onde os Interpol chafurdam, miserabilistas, no lodo da depressão, Funeral chora e celebra a vida ao mesmo tempo. Poucos clássicos do indie serão tão afirmativos e mobilizadores. O luto, é preciso não esquecer, é um passo em frente.
E porque é que Funeral é tão imenso, considerado por muitos como o disco da década? As dez bonitas melodias não chegam para explicar o mistério. Nem tão pouco as suas cuidadas palavras sobre o amor, a morte e a perda da inocência, por mais neve de Montréal que caia em seu redor. Não, amigos, o seu segredo está em outro lugar: na primazia quase fascista da emoção, em cujo nome tudo o resto é subjugado. Enquanto as outras bandas expressam algumas emoções através da música, os Arcade Fire expressam alguns bonitos acordes através de violentas emoções. É demente o projecto do casal Win Butler-Régine Chassagne e seus leais compinchas: arrancar os corações do seu peito e entregá-los nas nossas mãos, vivos, sangrentos, ainda a palpitar…
São emoções em estado bruto, mais selvagens e extravasantes do que alguma vez o foram na história da pop. Por isso, tudo em Funeral é violentamente épico. Por isso, cada canção vai crescendo, e o tempo acelerando, até rebentar no final. Por isso, Funeral começa com uma abertura que tudo anuncia (“Neighborhood #1”) e termina com um solene epílogo que tudo encerra (“In the Backseat”). Por isso, a cada momento de tempestade (“Neighborhood #2”) vem sempre a introspectiva bonança (“Une Année Sans Lumière”). Por isso, as epopeias Born to Run (Springsteen), Disintregration (The Cure), Dog Man Star (Suede) e OK Computer (Radiohead) parecem, por comparação, burocráticos manuais de contenção expressiva.
Mas esta exposição emocional nada tem de auto-destrutiva. Quando Ian Curtis expunha a sua culpa na sua sombria arte, assistíamos em directo à antecâmara do seu suicídio, do qual não podemos deixar de nos sentir pelo menos um pouco cúmplices. Ora o caso dos nossos canadianos favoritos é radicalmente diferente. Em Funeral há catarse mas não auto-destruição. Se se choram os mortos é para melhor cuidarmos dos vivos. Se expõem as suas vulnerabilidades, é porque criam um contexto seguro para o fazer, uma rede de cumplicidades, primeiro entre os elementos da banda, e depois com o próprio público. A palavra-chave é agora: comunidade.
Há aqui um elemento quase religioso, em que a turba de fiéis se congrega em volta dos seus agnósticos pastores. A pinta completamente unrock’n’roll dos Arcade Fire (as roupas de amish, o desdém pela cultura de drogas, a excessiva simpatia à vizinho dos Simpsons) acentua esta sua faceta quase sacerdotal. O que é curioso é a vastidão do “rebanho”, estranha no mundo indie, intrigante no novo e fragmentado mundo mediático.
Essa improvável imensidão terá várias explicações, a começar pelo seu invulgar talento. Mas há um factor que se destaca, e que o distingue da cultura indie de onde provém: a sua descomplexada vontade de chegar ao mainstream. O indie rock despreza, quase por definição, as “massas ignotas”, e os Arcade Fire procuram-nas sem pudor algum. Estamos do lado dos canadianos: o snobismo indie não deixa de ser parvo só por ser indie. Se se tem fé nas suas canções, como os Beatles e o Bowie um dia a tiveram, porque não levá-las ao máximo número de pessoas? Ágata, a marota, costumava dizer: “Pode-se ser sensual até a pôr a mesa.” Nós parafraseamos: “Pode-se ser autêntico até num concerto de estádio.”
Surge outra inevitável pergunta: se tudo é assim tão majestático porque é que Funeral nunca cai no azeite típico das bandas heróicas, dos geniais Queen aos pretensiosos Muse? A resposta é: porque os Arcade Fire têm o cuidado quase obsessivo de cortar a sua grandiosidade épica com alguns ingredientes de mais difícil digestão. Falamos da guitarra áspera como lixa, da voz vulnerável de Win Butler e da gravação suja, quase lo-fi, de todo o disco. Só a rudeza do riff de “Wake Up” (imortal!) redime a sua desbragada sumptuosidade.
Neste tempo cínico e secular, em que perdemos a fé nas igrejas e nas ideologias, estes discos maiores do que a vida são o nosso último reduto de transcendência. Enquanto houver quem toque assim, sem palheta, directamente no nosso coração, teremos ainda razões para acreditar.
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