Os fantasmas de Roger Waters atacam outra vez: uma crise de meia-idade; a autópsia de um casamento a ruir; a traição, o desejo, a culpa. Uma revelação lúcida dos “segredos dos locais, que no fundo são iguais em todos nós.”
O primeiro disco de Waters a solo não é grande espingarda. Mas, por outro lado, é uma maravilha. Os juízos estéticos são coisas danadas. Tudo depende do que procuramos. E de como o ouvimos.
Para quem procura canções, e que ouve o álbum com a leveza de quem procura canções, não vale um caracol. É uma colagem de fragmentos melódicos, uns mais inspirados do que outros, tudo soando demasiado a out-takes do The Wall (não obstante o bom gosto bluesy dos arranjos). Dois temas são, contudo, mais focados: a orelhuda canção-título e a comovente balada “5.06AM (Every Strangers Eyes)”.
Tudo muda, porém, de figura se no disco buscarmos conceitos, e se o ouvirmos com o peso de quem procura conceitos. Ora essa forma de ouvir exige rituais complexos, e parte do prazer estético decorre justamente desses rituais: os headphones, o libreto na mão, a escuta atenta do princípio ao fim, o luxo da repetição da experiência, tudo isto enquanto estamos reclinados num confortável sofá. Então uma história bem escrita começa a emergir, e as tais canções desfocadas tornam-se, como que por magia, em apropriadíssimos instrumentos para servir essa narrativa. Os fantasmas de Roger Waters ganham então forma: uma crise de meia-idade; a autópsia de um casamento a ruir; a traição, o desejo, a culpa. Uma revelação lúcida dos “segredos dos locais, que no fundo são iguais em todos nós.”
Destaque para a guitarra-solo de Eric Clapton, num dos desempenhos mais fluidos e expressivos da sua carreira. Criou também um precedente. Roger Waters nunca se emancipou totalmente da matriz dos Floyd, e um dos seus sintomas foi o recurso recorrente a guitarristas olímpicos, numa espécie de acto falhado freudiano para voltar a ter Gilmour a seu lado. O milagre não voltou a acontecer (e não foi por falta de preces e orações), mas a colaboração de guitarristas de topo como Clapton, Jeff Beck e Jonathan WIlson, isso já ninguém nos pode tirar.
É claro que Roger Waters já conseguiu melhor. Houve um tempo feliz de sol na eira e chuva no nabal: Dark Side of the Moon, Wish You Were Here, The Wall, todas essas obras-primas conseguiram conciliar canções imensas com engenhosos conceitos. Mas então Waters não estava sozinho. Tinha a insubstituível ajuda dos outros Floyd: nas composições, nos arranjos, e sobretudo naquela inexplicável alquimia que aparecia quando todos estavam juntos.
Acontece que as comadres se zangaram. E que nem os Floyd amputados do seu líder, nem o seu líder amputado dos Floyd, conseguiram alguma vez repetir essa magia.
É uma pena.
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