Ainda que por absurdo, poderemos sempre pensar ou dizer que ouvir Gris-Gris de uma ponta a outra será o suficiente para dele sairmos tocados (pelo menos) pela intensa pedrada que o álbum apresenta.

Escutar atentamente as sete canções do disco de estreia de Dr. John é uma aventura digna de grande respeito. Para quem ainda não se embrenhou nessa savana de som e mistério, fica o aviso: faça-o por sua livre e espontânea vontade. O resultado pode ser viciante, mas também pode resultar numa bad trip.

Fez cinquenta anos no passado mês de janeiro. Nesse distante início de ano de 1968, Dr. John (Malcolm John Rebennack de nascimento), Gris-Gris surgiu nas lojas da especialidade envolto em enormes dúvidas. Ficou histórica a frase do presidente da Atlantic Records quando exclamou “How can we market this boogaloo crap?”. Mesmo assim, o disco foi crescendo em termos de popularidade e ganhando, ao mesmo tempo, uma importância que ninguém poderia prever. Do grande falhanço inicial, passou-se aos elogios que o colocaram no patamar dos quinhentos melhores discos de sempre. À cautela, depois do nosso juízo inicial, devemos recordar que Gris-Gris não é um disco para todas as ocasiões, sobretudo pela vertente exploratória que revela uma mente tomada por drogas e pelos seus conhecidos efeitos. Antes de o pormos a girar, bastará um olhar atento à capa para sabermos onde estamos metidos. Não nos deixa margens para dúvidas, pois não? Fumo, um olhar vidrado, cores intensas e sombras tóxicas, a frente e o perfil do autor simultaneamente expostos. É a moca absoluta!

O álbum, na sua curta duração de trinta e três minutos e doze segundos, atira-nos para o centro de uma espécie de festa macabra, um louco carnaval de sons e ritmos imprevistos. A abrir, a alienada “Gris-Gris Gumbo Ya Ya” faz lembrar (na voz de Dr. John, sobretudo) Tom Waits, mas é o músico de Louisiana que se apresenta (“they cal me Dr. John, the night tripper”), num tema repleto de vozes fantasmagóricas e que dá o mote para as andanças seguintes. O voodoo sonoro instala-se para não mais nos largar. Os batuques enegrecidos de “Danse Kalinda Ba Doom” inquietam e o soul-funk esquisito de “Mama Roux” leva-nos em frente num caminho cada vez mais esotérico e desgovernado até “Danse Fambeaux”. Estamos em New Orleans, em pleno Mardi Gras, e tudo nos soa de forma lasciva, perversamente insidiosa, quase mentecapta. Estamos a meio da viagem, e totalmente “far-out of nowhere”. Sons de pássaros, gritos em sussurro, tudo parece vir de dentro da nossa própria cabeça e da nossa própria perceção.

Do outro lado do disco, “Croker Courtbullion” abre as hostilidades através de mais percussões, vozes, cantos, teclados e flautas em caminhante delírio. Um pouco de free jazz nunca fez mal a ninguém. Um pouco de free blues também não, pelo que chegamos a “Jump Sturdy”, que poderia ter sido o hit  improvável de um álbum sem hits, uma vez que o seu balanço nos aproxima, mais do que em qualquer outro tema do álbum, do “formato canção” mais tradicional. De seguida, os oito minutos finais de Gris-Gris reforçam tudo o que de tétrico e sombrio existe nesta gravação. Ecos de vozes, sussurros, ritmos tribais, danças escangalhadamente deliciosas, cabeças a rebentar de fumo. É com “I Walk On Guilded Splinters” que termina a magia negra que Dr. John nos preparou sem nós estarmos preparados para tamanho exotismo.