É pop, mas não é pop. É clássico, mas não é clássico. Os jogos de paradoxos que eventualmente possam morar na identidade da música de Philip Glass, sobre os quais o próprio graceja no episódio a si dedicado pela série “Four American Composers” (de Peter Greenaway), ganharam expressão maior em “Songs From Liquid Days”, um ciclo de canções que o compositor criou para edição em disco em meados dos anos 80. Por essa altura Philip Glass tinha há alguma experiência na criação de música vocal, não só através dos seus primeiros trabalhos para os palcos da ópera, mas também na canção “A Gentleman’s Honour” integrada em “The Photographer”, valendo a pena referir que datam de finais dos anos 70 e inícios dos 80 colaborações suas em estúdio com bandas indie como os Polyrock ou Raybeat. Mas a ideia de trabalhar mais a fundo a canção era um desafio a enfrentar.
A canção, que o compositor identifica nas notas que acompanham o disco como a “mais básica das formas de expressão musical”, era, em meados dos anos 80, um objectivo na sua linha do horizonte. E o ponto de partida foi encontrado em palavras pedidas a David Byrne, com quem já antes havia trabalhado. A ele juntou as colaborações (na escrita) de Paul Simon, Suzanne Vega e Laurie Anderson, figuras com experiência em campos pop/rock que admirava não apenas pelo seu trabalho de composição mas também pela carga poética expressa nas respetivas canções. Só depois de encontrados os poemas avançou a composição. E, no fim, as vozes. Assim se juntaram num mesmo disco, nomes como os acima citados e ainda os de Linda Rondstat, Douglas Perry, The Roches ou o Kronos Quartet.
“Songs From Liquid Days”, que precede futuras composições e arranjos para as vozes de Marisa Monte, Pierce Turner, Mick Jagger, Natalie Merchant ou Ute Lemper e, mais tarde, um novo ciclo de canções com poemas de Leonard Cohen, é um herdeiro directo da relação próxima com a cultura popular partilhada por algumas figuras da “vanguarda” nova-iorquina dos anos 70 e, ao mesmo tempo, um fruto do progressivo trabalho para lá dos fundamentos básicos do minimalismo nos quais nascera a linguagem musical de Philip Glass. Notam-se não apenas sinais de um mais largo espectro de soluções nos arranjos (que o projeto para disco “Glassworks”, de 1982, já havia sugerido) e ainda ensinamentos colhidos em primeiras experiências na ópera.
Disco que revela assim uma ideia algures numa aparente terra de ninguém entre mundos distintos, “Songs From Liquid Days” pode ser hoje encarado como um marco fundamental na história da abolição progressiva de velhas barreiras de género na música que, entretanto, tanto levou um Sufjan Stevens a desafiar os horizontes da linguagem pop/rock num “Age of Adz” ou um Osvaldo Golijov a integrar as novas electrónicas em “Ayre”.
Sem comentários:
Enviar um comentário