segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

“Roberto Carlos” (1970, CBS), Roberto Carlos

 



Na virada dos anos 1960 para os anos 1970, Roberto Carlos passou por um processo de transição que reorientaria sua carreira artística e, em pouco tempo, o consolidaria como um dos maiores ícones da música brasileira. O perfil de astro efervescente da Jovem Guarda ficou para trás. Isso já começara a se delinear com o álbum O Inimitável (1968), seu primeiro trabalho pós-Jovem Guarda, onde Roberto experimenta pela primeira vez com soul, funk e gospel. 

Em 1969, Roberto lançou o álbum Roberto Carlos, com a famosa capa em que o cantor aparece solitário, sentado na areia da praia. Nele, Roberto continuou sua experiência com a música negra americana através de canções que se tornaram grandes sucessos, como "Não Vou Ficar" (de Tim Maia), "Nada Vai Me Convencer" (de Paulo César Barros), "Sua Estupidez" e "As Curvas da Estrada de Santos". Além de mostrar um Roberto mais envolvido com referências de soul, funk e R&B americanos, o disco evidenciou que o cantor adotaria o romantismo como sua identidade artística. 

Porém, embora a fama e a fortuna de Roberto Carlos aumentassem a cada novo lançamento, ele ainda não tinha o apreço e reconhecimento da elite e da classe intelectual. Apesar de seu sucesso entre as camadas populares, Roberto percebia que, para consolidar a sua consagração como artista, precisava conquistar esse público mais endinheirado e influente. 

Foi então que Roberto e seu empresário, Marcos Lázaro (1925-2003), tiveram a ideia de realizar uma temporada de shows na casa de espetáculos mais moderna e conceituada do Rio de Janeiro, o Canecão, frequentada pela elite carioca. Até aquele momento, Roberto se apresentava em clubes, ginásios e pequenos estádios, com figurinos e cenários modestos. Inaugurado em 1967, o Canecão recebia os mais importantes artistas nacionais e internacionais, sendo o local ideal para que Roberto Carlos alcançasse seu objetivo. 

Para gerenciar essa empreitada ousada, Marcos Lázaro convidou Luiz Carlos Miéle (1938-2015) e Ronaldo Bôscoli (1928-1994), dupla de produtores consagrados que participaram do movimento da bossa nova e tinham experiência na direção e produção de shows na TV e em casas de espetáculos. A dupla havia ganhado fama dirigindo e produzindo shows de artistas como Elis Regina (1945-1982), Sérgio Mendes, Wilson Simonal (1938-2000) e Tamba Trio no Beco das Garrafas, reduto de artistas da bossa nova e do jazz no Rio de Janeiro. 

Luiz Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, dupla de produtores de espetáculos que
ajudou Roberto Carlos a conquistar o público mais sofisticado.

Miéle e Bôscoli aceitaram o convite e, ao se reunirem com Roberto Carlos, convenceram o cantor de que o show deveria contar com uma big band ao estilo americano, sob a direção do renomado maestro Chiquinho de Morais (1937-2023). O maestro rapidamente identificou as limitações da RC-7, banda de apoio de Roberto Carlos, sugerindo a substituição de alguns músicos, como o guitarrista José “Gato” Provetti (1941-1996), o baixista Bruno Pascoal e o baterista Anderson Marquez, mais conhecido como Dedé, amigo de longa data de Roberto. Contudo, Roberto Carlos se recusou a demitir seus músicos, o que levou a uma solução criativa: o uso de duas baterias no palco, uma tocando e a outra dublando, solução que foi bem recebida pela crítica. Dedé foi mantido na banda, e o experiente Wilson das Neves (1936-2017) assumiu a outra bateria. 

O espetáculo, intitulado Roberto Carlos a 200 Km Por Hora, refletia a paixão do cantor por velocidade e automóveis, temas recorrentes em suas canções. A cenografia lembrava uma pista de corrida, incluindo um carro esporte no palco e efeitos visuais que simulavam velocidade. O show inovou ao trazer um conceito arrojado, sendo considerado um sucesso tanto pelo público quanto pela crítica, embora alguns dos elementos tenham sido introduzidos para superar desafios técnicos. 

A estreia do espetáculo no Canecão ocorreu no dia 3 de setembro de 1970, com casa lotada e a presença de figuras ilustres da elite carioca, como a então Danuza Leão (1933-2022) e o jornalista Ibrahim Sued (1924-1995). A cantora Elis Regina, outrora opositora da Jovem Guarda e agora amiga de Roberto, também esteve presente para prestigiá-lo. O espetáculo permaneceu em cartaz até o final de novembro, sendo um imenso sucesso de público e crítica. 

Esse show marcou a estreia de Roberto Carlos cantando ao vivo com microfone de pedestal e haste dobrável, recurso que o acompanharia para o resto de sua longa carreira. Em outubro de 1970, Roberto entrou em estúdio para gravar seu próximo álbum, embora já tivesse registrado algumas faixas em maio daquele ano. O sucesso da temporada no Canecão influenciou diretamente a proposta musical do disco, demandando um cuidado especial na produção. 

Apresentação de Roberto Carlos no seu espetáculo Roberto Carlos A 200 Km por Hora,
no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1970.
 

As gravações ocorreram nos estúdios da CBS, no Rio de Janeiro, sob a produção de Evandro Ribeiro, que já havia produzido todos os álbuns anteriores de Roberto Carlos. Foi o último álbum de Roberto gravado no Brasil, pois, a partir do disco seguinte, ele passaria a gravar seus trabalhos nos Estados Unidos. Para essas gravações, Roberto contou com sua banda de apoio, RC-7, além da banda Renato & Seus Blue Caps e do tecladista Lafayette (1943-2021), amigos dos tempos de Jovem Guarda, em algumas faixas. Ele também teve a companhia da Orquestra de Cordas e Metais da CBS, regida pelos maestros Chiquinho de Morais (1937-2023) e Alexandre Gnattali, que foram fundamentais na qualidade dos arranjos. As gravações foram concluídas no começo de novembro de 1970. 

Intitulado apenas como Roberto Carlos—como vinha ocorrendo desde o disco anterior—o novo álbum chegou às lojas em dezembro de 1970, mês que se tornaria tradicional para os lançamentos de Roberto, aproveitando as vendas de Natal. A capa traz uma imagem em alto contraste, em preto e branco, de Roberto Carlos, registrada pela fotógrafa Thereza Eugênia durante uma das apresentações no Canecão. Décimo álbum de estúdio do cantor, esse trabalho de 1970 traz Roberto ainda mais envolvido com a música negra americana, incluindo o gospel, que abriria portas para suas futuras canções de cunho religioso. 

O álbum começa com "Ana", uma balada sobre a saudade de um amor perdido, onde o eu lírico lamenta a ausência de Ana e acredita que sua vida desandou após a partida dela. Agora, o sujeito está preso em suas lembranças e sonhos. "Uma Palavra Amiga" é uma balada em ritmo de soul music sobre a superação de um amor não correspondido, cujos versos são acompanhados por um naipe de cordas e metais que dão um tom de dramaticidade à canção. Merece destaque a robusta linha de baixo executada por Paulo César Barros, da banda Renato & Seus Blue Caps. 

Em "Vista a Roupa Meu Bem", Roberto canta de forma fanhosa para simular um cantor dos anos 1920, da época do gramofone. Na letra, o eu lírico pede à sua amada que se vista e deixe a praia para formalizarem o matrimônio. "Meu Pequeno Cachoeiro" é um tributo a Cachoeiro de Itapemirim, cidade natal de Roberto Carlos e do autor da canção, Raul Sampaio (1928-2022): "Vivo só pensando em ti / Ai que saudade dessas terras / Entre as serras / Doce terra onde eu nasci". 

"O Astronauta" trata sobre um indivíduo desiludido com este mundo marcado por guerras e injustiças. Ele nutre o desejo de se afastar da realidade e viver no espaço sideral, longe da tristeza e da falta de amor que percebe na Terra. Os arranjos da canção refletem a atmosfera melancólica e introspectiva da letra. A combinação do naipe de cordas e de metais cria uma sonoridade suave e espacial, evocando a sensação de imensidão e isolamento, reforçando o tema do desejo de fuga. 

Casa de Cultura Roberto Carlos, em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo.
A casa onde nasceu Roberto Carlos virou um museu que guarda memórias da vida
do cantor na sua cidade natal, onde morou até os 13 anos e inspirou 
a canção "Meu Pequeno Cachoeiro".

Na balada soul "Se Eu Pudesse Voltar no Tempo", a letra trata do arrependimento e da vontade do eu lírico de corrigir os erros do passado para alcançar a felicidade perdida: "Quando viu que teve tudo / Pra viver e não viveu / Se eu não estava certo do que eu sentia / Se tudo está distante do que eu queria / O que vou fazer preciso saber". 

"Preciso Lhe Encontrar" traz o desespero e a solidão de um homem que se sente perdido sem o amor que deixou escapar, e busca a todo custo reencontrar esse amor para recuperar o sentido de sua vida: "Minha vida está perdida / Já nem sei pra onde eu devo caminhar / O meu tempo, eu sei é pouco / É preciso amor lhe encontrar". A singela "Minha Senhora" trata do amor sincero e apaixonado de um jovem por uma mulher mais madura. Ele expressa o desejo de namorar e encontrar a felicidade ao lado dessa mulher amada, independentemente das diferenças de idade. 

A faixa seguinte, “Jesus Cristo”, é a mais famosa do álbum e inaugura uma tradição na discografia de Roberto Carlos de cada álbum trazer pelo menos uma canção de temática religiosa. “Jesus Cristo” aborda a fé e a busca por orientação espiritual em meio às incertezas da vida. A letra expressa o desejo de proximidade com Jesus, visto como guia e fonte de esperança, e convida os ouvintes a se unirem em uma caminhada coletiva de fé, simbolizada por uma procissão crescente que compartilha a mesma oração e crença. É perceptível a forte influência da música gospel americana nesta, desde o balanço rítmico aos vocais de apoio que acompanham Roberto Carlos. 

O romantismo retorna com a calma e a serenidade de "Pra Você", uma canção que trata do lamento e da dor pela perda de um amor, em que o eu lírico expressa a sensação de ter dedicado tudo para a pessoa amada e pede que ela volte para restaurar a alegria perdida. Na ótima e emocional "120... 150... 200 Km Por Hora", que traz um sensível e dramático naipe de cordas em contraste com o peso da bateria e a robustez da linha de baixo, Roberto Carlos usa a velocidade como fuga desesperada de suas dores e lembranças, simbolizada pela alta velocidade e pelo desejo de escapar do passado e da solidão. 

Fechando o álbum, "Maior Que O Meu Amor", canção que traz em seus versos o conflito interno do eu lírico entre a vontade de esquecer um amor não correspondido e a incapacidade de superar a dor e a saudade: "Maior que o meu amor / É a vontade de dizer que não te amo / Que não te quero, não te peço e não te chamo". 

Roberto Carlos tocando guitarra durante a antológica temporada de shows
no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1970. 


Com pouco mais de 520 mil cópias vendidas, o álbum Roberto Carlos de 1970 foi muito bem recebido pelo público e pela crítica. As faixas "Ana", "O Astronauta", "120... 150... 200 Km Por Hora" e, principalmente, "Jesus Cristo", se tornaram grandes sucessos radiofônicos. "Jesus Cristo" foi uma canção recebida com certo estranhamento pelos católicos mais conservadores, que acharam uma blasfêmia uma canção sobre Cristo cheia de suingue, cheia de balanço. Mesmo assim, a canção alcançou grande sucesso popular a tal ponto de ter sido a terceira música mais tocada nas rádios brasileiras entre 1970 e 1971. 

O álbum Roberto Carlos de 1970 deixou um legado significativo na música brasileira, tanto pelo conteúdo das canções quanto pela transformação da imagem do cantor. Esse disco marcou a transição definitiva de Roberto Carlos para o estilo romântico que caracterizaria sua carreira nas décadas seguintes, afastando-se do rock e da Jovem Guarda. Ao flertar com a soul music, o funk e a música gospel americanos a partir do álbum O Inimitável (1968) e incorporar as orquestrações de arranjos muito bem elaborados, Roberto criou uma sonoridade mais sofisticada e ritmada para o seu trabalho. 

Uma das principais contribuições desse álbum de 1970 foi a introdução de temas mais maduros e introspectivos em suas letras, algo que ressoou profundamente com o público e influenciou a música popular brasileira. A faixa "Jesus Cristo" trouxe a temática religiosa e espiritual para o mainstream, enquanto as outras faixas abordavam o amor e a saudade de maneira mais profunda e sofisticada, abrindo caminho para uma nova era de música romântica no Brasil. 

Além disso, o álbum consolidou Roberto Carlos como um ícone cultural, cuja influência transcendeu a música para se tornar parte da identidade nacional brasileira. As canções do disco continuam a ser celebradas e reinterpretadas por artistas de várias gerações, atestando o impacto duradouro de sua obra.

 

Faixas

Lado 1

1. “Ana” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)

2. “Uma Palavra Amiga” (Getúlio Cortes)     

3. “Vista a Roupa Meu Bem” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)         

4. “Meu Pequeno Cachoeiro” (Raul Sampaio)           

5. “O Astronauta” (Edson Ribeiro-Helena dos Santos)         

6. “Se Eu Pudesse Voltar No Tempo” (Pedro Paulo-Luís Carlos Ismail)

 

Lado2 

7. “Preciso Lhe Encontrar” (Demétrius)

8. “Minha Senhora” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)

9. “Jesus Cristo” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)     

10. “Pra Você” (Silvio César) 

11. “120...150...200 Km Por Hora” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)             

12. “Maior Que o Meu Amor” (Renato Barros)


"Ana”

 “Uma Palavra Amiga”

 
 “Vista a Roupa Meu Bem” 

 “Meu Pequeno Cachoeiro”

 “O Astronauta”

 “Se Eu Pudesse Voltar No Tempo”

 “Preciso Lhe Encontrar”

 “Minha Senhora”

 “Jesus Cristo”

 “Pra Você”

 “120...150...200 Km Por Hora”

“Maior Que o Meu Amor”


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Piraña Ska Punk

  Piranha é uma banda de ska-punk de Santiago, Chile. Discografia 01- No Más Montajes (2022) 01- El Pobre 02- Oveja Negra 03- C.A.E. la Educ...