No seu novo disco de originais, Sérgio apropria-se de músicas de outros, fazendo-as suas. O canibalismo compensa: Nação Valente é um dos melhores Godinhos dos últimos anos.
Caro amigo, fã de velha data do nosso Sérgio Godinho. Imagina que não tinhas nenhuma informação a priori sobre Nação Valente e que o punhas a rodar no gira-discos com esses ouvidos virgens. Aposto o meu vinil do Campolide em como sentirias a agradável sensação de um regresso a casa, a de quem frui mais uma vez o inconfundível universo estético godinhiano.
Qual não seria então o teu espanto quando te dissesse que oito das dez músicas não foram escritas por Godinho, sendo apenas as letras da sua autoria. Não sei se foram os romances que tem escrito que lhe roubaram o tempo para musicar canções. Ou se simplesmente o seduziu o desafio de fazer suas as músicas dos outros. O que é certo que autores tão diversos como David Fonseca, Pedro da Silva Martins (dos Deolinda), Filipe Raposo, Hélder Gonçalves (dos Clã) e Nuno Rafael meteram a foice em seara alheia com as suas composições. Uma das canções tem mesmo música e letra de outro autor (a suculenta “Delicado”, da crocante Márcia). Noves fora, nada, apenas duas canções sobejam com um pedigree puro, música e letra do Godinho (ambas deliciosas, aliás, sendo “Baralho de Cartas” um dos temas mais bonitos do disco).
A pergunta do milhão de dólares é: como foi possível que o lote mais impuro de canções que Godinho alguma vez nos ofereceu soe tanto a ele próprio? A resposta só pode ser uma: porque Godinho canibalizou sem piedade os seus amigos. Comeu-lhes os membros, o tronco e a cabeça, o sangue a esguichar por todo o lado. Toda a sua individualidade criativa funcionou como um suco digestivo que decompôs os amigos devorados em moléculas assimiláveis pelo seu próprio organismo. Tudo serviu como enzima: o seu timbre de voz e dicção; o humor e trôpega métrica das suas letras; as pequenas alterações melódicas de ajustamento à sua singular respiração. O facto de a produção musical ter sido entregue mais uma vez a Nuno Rafael, que o acompanha nestas andanças há cerca de vinte anos, deu a Nação Valente o remate final de familiaridade.
Contudo, Godinho não levou o seu projecto antropofágico até ao fim. Teve pudor em comer o seu velho amigo José Mário Branco, com quem faz parcerias desde o seu primeiro disco. Falamos de “Mariana Pais, 21 anos”, a única canção de Nação Valente que não soa a Sérgio Godinho. Tudo neste tema denuncia quem o escreveu: a melodia, a sequência de acordes, a forma com que Godinho prolonga as sílabas finais, tudo tem “Zé Mário” escrito a negrito, e ainda bem. Canibalismo, sim, mas com limites. Não é bonito comer os amigos de longa data.
Ora se a antropofagia nos levanta algumas dúvidas morais, recomendamo-la vivamente enquanto projecto estético. Não tenhamos quaisquer dúvidas: Nação Valente é um dos melhores discos assinados por Godinho nos últimos anos. Dez grandes canções com melodias bonitas e refrões certeiros. Dez grandes arranjos, com muita guitarra acústica e percussões a darem um travo orgânico ao disco. Dez grandes letras nas quais as suas velhas temáticas regressam para nos assombrar: a sede da procura, o desejo, o carinho pelo nosso Portugal imperfeito, os amores em ruínas, a solidão.
É claro que há uma imensa ironia no facto de um dos songwriters maiores do nosso cancioneiro pedir a outrem músicas emprestadas. “Como se um restaurante com estrelas Michelin não fizesse a comida que serve”, dizia-me no outro dia um velho amigo. Mas, caramba, então os grandes escritores de canções não podem, de quando em vez, fazer uma sestinha à sombra de uma bonita árvore? Então não conquistaram, pela sua imensa obra, o direito ao ocasional descanso do guerreiro? Veja-se o caso do Chico Buarque, que fez alguns dos seus melhores discos nesta modalidade letras suas/ músicas de outros. Vamos agora “jogar pedra na Geni” por causa disso? Que nenhum preconceito sobre a origem das músicas obscureça então o essencial: Nação Valente é um grande disco porque tem grandes canções. Tudo o mais é apenas fumaça.
O canibalismo compensa, segreda-nos o novo Godinho a cada recanto. O mundo seria um melhor sítio para viver se mais gente comesse com tanto gosto os seus melhores amigos.
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